HISTÓRIA DE SÁBADO DE ALELUIA
- por Ademar
Amaral (*)
No meu tempo de criança
havia uma vibração incomum quando amanhecia o sábado da Aleluia.
Alguns ficavam alegres
porque estariam, enfim, liberados do silêncio obrigatório da sexta-feira santa,
enquanto outros se mostravam ansiosos e preocupados porque era chegada a hora
do ajuste de contas com os pais, motivado por algum deslize acontecido durante
o sagrado dia da Paixão.
O preâmbulo acima foi
somente para dizer que no ano de 2009, já longe da minha infância, passei um
dos melhores sábados de aleluia da minha vida. E tudo começou na noite de
autógrafos do meu livro, Catalinas e Casarões, quando, no meio daquele mundo de
gente, tive a grata satisfação de rever o Paulo Ivan, um grande amigo dos bons
tempos do ainda Ginásio Dom Amando e hoje um executivo de alto coturno na Vale.
Dois dias depois ele me
ligou para me dar os parabéns, dizer que já tinha “devorado” o livro e fazer um
convite para passar o sábado de aleluia na casa dele, lá na Vila dos Cabanos,
em Barcarena.
Pois bem. Além da
gentileza do Paulo em convidar eu e minha esposa para um sábado na sua
aprazível casa, ele voltou a me ligar, já na noite de sexta-feira, pedindo que
eu desse carona a um amigo que ele também convidara para o mesmo passeio, mas
quase caí da cadeira quando ele pronunciou o nome da fera: Sebastião Tapajós.
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À esq., o encontro com o jovem e eu na balsa; à dir., Tião na casa de Paulo Ivan |
Detalhe: fora a admiração de muitos anos pelo músico Sebastião Tapajós, só lembrava uma vez de ter trocado umas poucas palavras com ele. Foi na Casa de Hóspede da Mineração Rio do Norte, em Trombetas, onde ambos nos encontrávamos hospedados e ele lá estava para um show junto com o cantor Nilson Chaves.
Ou seja, não o conhecia
tão bem como conheci e cheguei a me tornar amigo do irmão dele, o Mina, que era
goleiro do Botafogo, nosso timinho da rua Adriano Pimentel com jogo de camisa
doado por um outro amigo e peladeiro de praia: Dr. Everaldo Martins. Isso por
volta de 1960.
– Amanhã o Sebastião
Tapajós vai ser nosso carona – falei meio incrédulo pra minha esposa.
Resumo da ópera:
combinamos que ele nos encontraria às 7:30, no porto da balsa do Arapari, na
Estrada Nova.
Por conselho do Paulo Ivan
e pela buraqueira em que se encontrava a Alça Viária, preferi colocar meu carro
na balsa, deixando para enfrentar um trecho menor de asfalto na segunda etapa
da viagem.
Sem dúvida que a sugestão
foi acertada. Mais que um passeio prazeroso, a viagem pelo rio também me
pouparia de uma das coisas que eu mais detesto nesta vida: dirigir.
O Sebastião apareceu na
hora marcada. Calmo, andar lento, o violão companheiro sempre debaixo do braço,
se apresentou a nós com uma humildade de dar bom dia até pra cachorro.
– Oi, eu sou o Sebastião
Tapajós.
– Eu sou o Ademar, muito
prazer.
E fiz logo um comentário
para descontrair:
– Sou de Óbidos, mas morei
seis anos em Santarém, na casa do tio Zeca, o Zeca BBC. Estudei no Dom Amando
com o Paulo Ivan.
– Do seu Zeca BBC? Ele era
compadre do meu pai.
– O Mina, teu irmão, era
goleiro do nosso time. Por onde ele anda?
– Mora em Alenquer.
A pedido do Sebastião,
guardei com extremo cuidado o violão dele no bagageiro do meu carro e logo a
balsa começou a se afastar. Nesse momento, passam perto de nós três jovens, um
deles com um pequeno violão no ombro. O do violão olha em nossa direção,
arregala os olhos e exclama:
– Mestre Tapajós! Meu
Deus, se eu falo pro meu professor ele não vai acreditar!
Aproximam-se. Eram alunos
de violão do Conservatório Carlos Gomes e aconteceu, então, uma coisa
extraordinária como se os alunos e o violonista já se conhecessem há uns
quinhentos anos. O mestre logo sequestrou o violão do jovem, passou os dedos
nas cordas e deu a primeira lição do dia:
– A corda do grave está
empenada… mas, este tamanho de violão é ideal para viagem e estudo.
O discípulo concordou,
disse que já sabia sobre o defeito da corda e que ia trocar tão logo retornasse
a Belém. Aí teve início, talvez, a primeira aula de música que o mundo jamais
assistiu numa viagem de balsa pela Amazônia.
Durou o tempo inteiro da
travessia até atracarmos no porto do Arapari. Durante a viagem o mestre Tapajós
não se separou do pequeno violão e eu, expectador e testemunha privilegiada da
história, me limitei a ouvir em total estado de êxtase, eles trocarem
informações sobre acordes e técnicas, a maioria delas ininteligíveis para um
pobre leigo como eu.
Lá pelas tantas, o mestre
vira pra mim e pergunta:
– Quem tu achas que
inventou o jazz?
– Não foram os negros de
Nova Orleans? – arrisquei.
– Que nada, foi Bach, ouve
este acorde, é jazz puro.
– E não é que é mesmo? –
confirmou o atento discípulo do Carlos Gomes.
Aí o virtuosismo do homem
resolveu mexer num vespeiro da música popular brasileira.
– E a batida da bossa
nova? Quem inventou?
Bom, essa eu achei que
sabia responder. Afinal, uma semana antes eu tinha acabado de ler Chega de
Saudade, o excelente livro do Rui Castro sobre a história da bossa nova.
– Claro que foi o João
Gilberto – eu disse com ar de autoridade.
– É, mas o precursor de
tudo foi o saudoso Garoto, um dos maiores violonistas do mundo. E mostrou a
batida.
Chegamos ao porto do
Arapari sem ver o tempo passar. Despedimos dos jovens e seguimos nossa etapa
final para a Vila dos Cabanos. E o tom não mudou o dia inteiro na confortável
casa do nosso anfitrião. Mesmo conversando de modo descontraído, o Tião (nessa
altura o Sebastião Tapajós já tinha virado Tião) ficava dedilhando seu
instrumento, tirando acordes maravilhosos que talvez, sei lá, nem ele mesmo
soubesse de onde vinha.
Depois do farto almoço
regado a uma especial moqueca de caranguejo preparada pela Renata, a filha do
Paulo, autografei para o Tião um exemplar do meu Catalinas e Casarões. Ele leu
o prefácio do Lúcio Flávio Pinto e comentou:
– Porra, nesse o Lúcio
caprichou.
– Pois é – eu disse – quem
não gostar do livro, pelo menos tem o prefácio do Lúcio pra ler.
Retornamos pelo mesmo
caminho, na balsa das 18 horas. O Tião tinha hora para ir ao aeroporto receber
o famoso contrabaixista Ney Conceição que chegaria num voo do Rio de Janeiro.
Eles ainda precisavam começar a ensaiar naquela noite para uma apresentação que
aconteceria na terça-feira, no Teatro da Paz, show comemorativo aos seus 50
anos de vida artística.
Vida musical muito longa,
um monte de discos gravados na Alemanha, Japão, Estados Unidos e incontáveis
concertos ao redor do mundo ao lado gente do calibre de Astor Piazzolla, do falecido
guitarrista flamenco Paco de Lucía, de Nelson Cavaquinho, Cartola e muita gente
da pesada.
Ficamos jogando conversa
fora durante toda a travessia da volta. Eu no banco do motorista e ele no do
carona. Lá pelas tantas, resolvi colocar um pouco da música do meu MP3 e dei
uma baita duma sorte: na ponta da agulha estava o clássico Rhapsody in Blue, de
George Gershwin, que segundo o cineasta Woody Allen, no filme Manhattan, é um
dos dez motivos deste mundo pelos quais ainda vale a pena viver. Tapajós escutou
a obra prima em silêncio e fez um leve comentário:
– É com a Orquestra
Filarmônica de Berlim?
– É.
– Nossa, isso é muito bom.
Na noite de terça-feira,
dia 14 de abril, eu e minha esposa fomos assistir ao concerto do Tapajós no
Teatro da Paz, um dos melhores programas destes nossos muitos anos de casados.
Ele e seu parceiro Ney
Conceição estiveram numa noite de gala, tocaram como nunca e, aclamados,
voltaram ao palco para apresentar mais dois números.
Antes de irmos embora,
fizemos questão de cumprimentá-lo no camarim e de lhe dar um abraço de
despedida, mas nem parecia que minutos antes ele havia sido glorificado mais
uma vez pelo calor da exigente plateia.
Era o mesmo Tião, o cara
simples que viajou conosco na balsa do Arapari e que, quando pega um violão,
sempre incorpora nas mãos uma energia divina, confirmação de que sua arte é
mais uma prova latente da existência de Deus.
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* Nascido em
Óbidos, é engenheiro civil e escritor, autor do, entre outros, “Sementes do
Sol”, romance que tem como pano de fundo o ciclo da juta na Amazônia. Reside em
Belém.
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