VIDA RIBEIRINHA | CHEIA DE RIOS NA AMAZÔNIA PODE TRAZER FOME, DIZ PESQUISA

Criança em uma canoa na comunidade rural de Surara, às margens do rio Purus, no estado do Amazonas. Foto: Daniel Tregidgo
"A fome é um holocausto silencioso". A frase de Ismail Serageldin, filósofo egípcio, pode ajudar a descrever a realidade oculta que vive parte dos povos tradicionais que habitam na Floresta amazônica. A região é conhecida por sua grande biodiversidade e riqueza, mas nem isso impede que, durante a cheia anual dos rios, parte dos ribeirinhos do Amazonas sofram com a fome.
Jonata Martins, 23, é guia turístico e mora na comunidade Boca do Mamirauá, localizada no município de Tefé (distante 522 km de Manaus). Nascido e criado no local, ele conta que ver de perto como o movimento de cheia dos rios (de abril a julho) pode influenciar o que se come no interior do Estado.
Jonata e sua família nasceram na Reserva do Mamirauá
Jonata e sua família nasceram na Reserva do Mamirauá | Foto: Reprodução
"Aqui a gente mora em área de várzea, então na época da cheia o rio chega a subir mais de 12 metros. Quase 95% da terra fica debaixo d'água e isso dificulta muito a pesca, porque quando está seco, os peixes ficam em pequenos lagos, mas na cheia, eles se espalham muito mais", conta o jovem.
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O guia turístico explica que nem todos passam fome por causa do fenômeno, mas que se torna comum o medo de não saber se vai conseguir comer. Segundo ele, os ribeirinhos saem para pescar de manhã, mas acabam demorando muito mais para conseguir peixes, então só voltam às vezes no final da tarde.
"O que era para ser um almoço vira uma janta, e aí tem gente que acaba fazendo só uma refeição por dia, isso quando consegue pescar", afirma Jonata.
Pesquisam apontam que o volume de água pode crescer até 15 metros acima do normal
Pesquisam apontam que o volume de água pode crescer até 15 metros acima do normal | Foto: Daniel Tregidgo
A comunidade de Boca do Mamirauá é composta por 34 famílias que vivem, em sua maioria, de pescado e plantação. Quando alguém não consegue pescar ou não há comida estocada, os próprios vizinhos se ajudam e quem tem alguém alimento divide com a pessoa que está sem nada, conta o jovem.
"Aí quando tem um dinheiro, a gente vai em Tefé ou outra cidade próxima e compra um lanche, um café da manhã. Às vezes dá até para pescar e depois vender por lá", conta Jonata.
Ele diz que os seus peixes favoritos são tambaqui, tucunaré e pirarucu, todos pescados nas águas doces que correm por entre as matas do estado do Amazonas. 
Fenômeno  virou estudo
A insegurança alimentar - escassez de alimento - vivida por ribeirinhos no Amazonas foi documentada por pesquisadores da Universidade Federal de Lavras (Ufla), em Minas Gerais, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade de Lancaster, no Reino Unido.
Publicado na revista People and Nature, o trabalho ganhou o nome de 'Pesca Difícil e Severa Segurança Alimentar Sazonal em Florestas Inundadas na Amazônia' (tradução livre). O trabalho é assinado pelos cientistas ingleses Daniel Tregidgo, Jos Barlow, Luke Parry, e Paulo Pompeu, do Brasil. 
Para o estudo, os pesquisadores entrevistaram 331 famílias ribeirinhas de 22 comunidades ao longo de 1,2 mil km às margens do Rio Purus, nos municípios de Lábrea e Beruri, ambos no Amazonas.
As entrevistas foram realizadas durante a cheia (abril a julho) e seca (agosto a novembro) dos rios, em 2014, e os participantes foram questionados sobre suas rotinas alimentares nos últimos 30 dias anteriores à visita dos pesquisadores. 
Os resultados apontam que, durante a cheia dos rios, 85% das famílias disseram precisarem substituir o peixe ou a carne por outro alimento pelo menos uma vez ao longo de 30 dias. Além disso, mais da metade dos entrevistados (65%) disse ter comido menos do que gostaria. 33% precisaram pular alguma refeição e 17% não comeram nada por um dia inteiro.
Daniel Tregidgo é biólogo e pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM). O cientista é coautor do estudo com os ribeirinhos e diz que é preciso deixar claro que a fome registrada no artigo acontece em poucos casos.  O mais comum, mas também grave, é a insegurança alimentar vivida pelos ribeirinhos durante a cheia dos rios.
Daniel Tregidgo à esquerda, de chapéu amarelo
Daniel Tregidgo à esquerda, de chapéu amarelo | Foto: Reprodução
"Se eu somente tivesse uma cebola e um pacote de macarrão em casa, sem como comprar mais hoje ou amanhã, eu ficaria preocupado. É essa a insegurança que parte dos entrevistados sentem. Mas quando a pesca é boa, se come bastante mesmo. E esses lugares não são chamados de comunidades à toa. Quando alguém não tem comida, eles dividem uns com os outros", afirma o cientista.
O biólogo conta que o pescador até tem mais chances de voltar com algum peixe do que se fosse caçar algum animal, por exemplo, mas que a taxa de captura durante a cheia diminui cerca de 73%. 
Diferente da cheia, na seca dos rios a pesca é considerada mais fácil
Diferente da cheia, na seca dos rios a pesca é considerada mais fácil | Foto: Daniel Tregidgo
Ele aponta um texto antigo que encontrou recentemente e acredita ser o primeiro registro da dificuldade de ribeirinhos em pescar peixe durante a cheia dos rios.
"[As pescas] às vezes-eram mal sucedidas, pois o peixe é muito difícil de encontrar na época das cheias, pois tanto as terras baixas entre os furos, como a infinita cadeia de lagoas e lagos ficavam inundadas pelo rio, tornando assim dez vezes maior a área à disposição da população de barbatanas."
A citação está no livro The naturalist on the river Amazonas (O Naturalista no Rio Amazonas), escrito por Henry Walter bates (1825-1892), um explorador inglês.
A relação dos ribeirinhos com a floresta e os rios
Cerca de 37 mil pessoas vivem à beira de rios que cortam as matas do Amazonas, maior estado do Brasil em extensão. O dado é do Projeto Povos Ribeirinhos, divulgado pelo jornal O Globo. Essas pessoas muitas vezes nascem, crescem e morrem nesses espaços.
Ana Claudeise é cientista social e líder do grupo de pesquisa Territorialidade e Governança Socioambiental na Amazônia, pertencente ao IDSM. Ela conta que os ribeirinhos têm um grande poder de adaptação à realidade amazônica e se veem muito ligados aos espaços em que vivem.
Ana também desenvolveu pesquisas relacionadas à rotina alimentar de ribeirinhos
Ana também desenvolveu pesquisas relacionadas à rotina alimentar de ribeirinhos | Foto: Reprodução
"Os ribeirinhos são chamados assim porque moram na margem de rios e igarapés e, por causa disso, a vida deles é regida pelo movimento desses afluentes. São gerações e gerações que vivem dessa forma e têm todo esse sistema social construído a partir dessa relação e inter-relação com o ambiente. E o rio é fundamental na vida dessas pessoas. É de lá que eles se deslocam para outros lugares, tiram os alimentos e bebem água. A relação rio e populações tradicionais é muito forte", diz a pesquisadora. 
Ela conta que tirar os ribeirinhos dos espaços que ocupam seria arrancar deles a própria vida e o que acreditam. Ana lembra quando em uma de suas pesquisas, perguntou a uma mulher ribeirinha o porquê de ela viver naquele ambiente. 
"Ela respondeu que vivia ali porque lá era o lugar dela, porque havia nascido lá, e era onde tinha sido criada. A história e as raízes estavam na beira do rio e não tinha motivo para se mudar", conta a cientista social.
Ajuda governamental
A Secretaria de Estado da Assistência Social (Seas) é uma das responsáveis por ajudar os ribeirinhos que moram no interior do Amazonas. Em nota para esta reportagem, a pasta se limitou a responder as atuais ações que estão sendo realizadas para ajudar os povos tradicionais, com atenção especial para a crise do coronavírus.
A pasta está viabiliza, atualmente, o pagamento de três parcelas no valor de R$ 200 do programa Apoio Cidadão para 50 mil famílias (metade do interior). O cartão possibilita a aquisição de produtos alimentícios, de higiene pessoal e limpeza doméstica em estabelecimentos credenciados.   
Outra frente de trabalho é a doação de alimentos para entidades socioassistenciais da capital e da área metropolitana de Manaus que atuam diretamente com o atendimento à população em situação de extrema pobreza. Um volume de cinco toneladas de alimentos é  disponibilizado todas as quartas-feiras pela Agência de Desenvolvimento Sustentável para a Seas, que repassa estes produtos para as entidades credenciadas, desde o início da pandemia. 
Alimentos têm sido entregues para parte dos ribeirinhos do Estado durante a pandemia
Alimentos têm sido entregues para parte dos ribeirinhos do Estado durante a pandemia | Foto: Divulgação/Seas
Na mesma nota, a Seas também informou que viabiliza a doação de cestas básicas aos moradores dos municípios do interior para suprir a carência alimentar e nutricional nesse contexto de pandemia pela Covid-19.
"Os municípios de Manacapuru e Iranduba foram atendidos com esta ação que teve início no mês de maio. Em Iranduba, além das comunidades ribeirinhas, moradores de casas flutuantes do Distrito de Cacau Pereira foram beneficiados. Em Manacapuru, além dos ribeirinhos, moradores de ramais foram atendidos pela Seas", informou a Secretaria.

Fonte: Waldick Junior - Em Tempo

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