A ONDA DE ATAQUES QUE OPÕE INDÍGENAS A CAÇADORES ILEGAIS NO TERRITÓRIO COM MAIS POVOS ISOLADOS DO PAÍS
Base flutuante de fiscalização da Funai na confluência dos rios Ituí-Itacoaí, no Amazonas, foi um dos alvos dos disparos na atual escalada de ataques na região |
A
escalada de ataques à base de Proteção Etnoambiental Ituí-Itacoaí da Fundação
Nacional do Índio (Funai), na Terra Indígena Vale do Javari, no oeste do
Amazonas, está colocando em xeque o trabalho de proteção da área com o maior
número de etnias em isolamento voluntário do país.
Desde
setembro, quatro ataques foram registrados ao posto de controle, segundo
funcionários do órgão, que é responsável por monitorar e fiscalizar os
territórios indígenas. Em um ano, entre novembro de 2018 e este mês, foram oito
ataques contra a base — o maior número desde a demarcação, em 1998.
Apenas
no primeiro fim de semana deste mês, a base foi atacada duas vezes. As
agressões são atribuídas a pescadores e caçadores ilegais, no momento em que
saíam da terra indígena após terem entrado sem autorização, segundo
funcionários da Funai que acompanham as investigações.
Servidores
e colaboradores das quatro bases da Funai instaladas na segunda maior terra
indígena do país afirmam que vão paralisar as operações de controle e
fiscalização da entrada e saída do território. Eles pedem que o governo federal
envie forças de segurança, como disseram à BBC News Brasil pessoas ligadas às
Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE).
Sem
essas operações, o acesso à terra indígena fica aberto para qualquer pessoa —
caçadores, pescadores, garimpeiros e madeireiros terão menos dificuldades para
entrar no território.
Os
indígenas temem ainda que ataques ainda mais violentos possam ocorrer e, por
isso, se articulam para assumirem eles mesmos a defesa dos postos.
O
governo federal, por sua vez, depois de colocar em dúvida a veracidade dos
ataques, não respondeu até o momento à solicitação dos funcionários da Funai
por segurança.
Documentos
da Funai e relatos de pessoas ligadas à FPE obtidos pela BBC News Brasil
mostram que o clima entre os servidores é de revolta em relação à falta de
proteção, e de receio de que em algum momento uma bala atinja um funcionário.
Por meio de documentos internos enviados à presidência do órgão, os servidores
vêm pedindo segurança desde o final do ano passado, quando começaram os ataques
à base Ituí-Itacoaí.
Essa
base é visada por ser a porta de entrada mais próxima para o Vale do Javari,
área procurada pelos caçadores ilegais por causa da riqueza dessa região, pouco
estudada e bem preservada.
Servidores
e colaboradores relatam que não há condições para prosseguir com o trabalho de
campo. Com o corte de verbas promovido neste ano na Funai, o apoio logístico
vem sendo comprometido, com servidores excedendo o tempo de serviço em campo
por falta de transporte. Nas circulares internas, eles pedem à direção do órgão
que consiga agentes da polícia, Exército ou Força Nacional de maneira
permanente.
Na
noite da última quinta-feira (07/11), a juíza federal Jaíza Maria Pinto acatou
ação do Ministério Público Federal contra a União e a Funai e ordenou que o
governo "preste imediato apoio operacional às entradas em campo de suas
próprias equipes da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari".
Também determinou que o órgão deve "alocar recursos materiais e
orçamentários para garantir o apoio das atividades por no mínimo seis
meses".
A
decisão da juíza não estipula prazos e nem penalidades caso a ordem não seja
cumprida. A PF e o Ministério da Justiça, que coordena a Força Nacional, não
responderam às solicitações da reportagem para comentar a decisão.
A
ordem judicial não alterou a postura de servidores e colaboradores das frentes
de proteção. Apesar de a decisão judicial ser bem-vinda, os funcionários têm
dúvidas se ela fará com que as forças de segurança atuem permanentemente no
Vale do Javari.
A
situação de insegurança ainda preocupa, uma vez que não houve sinalização às
bases, por parte da direção da Funai, sobre o tema. Com isso, os planos de
paralisação estão mantidos.
Para
além dos ataques, a sensação de confronto se intensifica na região. No mês
passado, um pescador foi baleado próximo de uma das aldeias do povo Korubo. O
revide veio duas semanas depois, quando dois adolescentes dessa etnia foram
atacados por pescadores.
Ataques a tiros
Na
madrugada de primeiro de novembro, oito homens em um canoão (canoa de 12 metros
usada pelos pescadores e caçadores) dispararam na base quando um colaborador
indígena apontou o holofote para a embarcação, procedimento usado para iniciar
a averiguação.
Dois
dias depois, outros três homens usaram o mesmo modus operandi: atirar contra a
base ao menor sinal de reação. Ninguém ficou ferido.
Em
outubro, o presidente substituto da Funai Alcir Teixeira esteve na região e
tratou os relatos de ataques feitos pelos funcionários — que se acumulam desde
o final do ano passado — como suposições. Os casos estão sendo apurados pela
Polícia Federal de Tabatinga, na tríplice fronteira com Colômbia e Peru.
Questionada
sobre o andamento dos trabalhos, a PF não respondeu às perguntas. A presidência
da Funai, que em agosto soltou memorando interno vetando os funcionários de
falarem com a imprensa, também não respondeu aos questionamentos enviados pela
reportagem ao longo da semana passada.
O
Ministério Público afirma que entrou com o pedido na Justiça por se tratar de
uma questão que "vem se alongando e crescendo". No pedido acatado
pela Justiça, o MP diz que a segurança dos povos indígenas de recente contato e
isolados do Vale do Javari está em risco e "com alto potencial de
ocorrência de genocídio".
As suspeitas
As
investigações apontam que os ataques partem de pescadores e caçadores ilegais
de Atalaia do Norte (AM) financiados sobretudo por grupos de contrabandistas de
animais de Tabatinga (AM) e Benjamin Constant (AM), as duas maiores cidades da
região, a 1.100 quilômetros de Manaus. Os animais são vendidos para compradores
brasileiros, peruanos e colombianos.
Atalaia
do Norte, com 15 mil habitantes e terceiro menor IDH do Brasil, é o município
mais próximo da confluência entre rios Ituí e Itacoaí, na entrada do Vale do
Javari. A junção dos dois rios foi a primeira a receber uma base de proteção
por sua localização estratégica, ainda em 1996, no processo de estabelecimento
de contato com o povo Korubo.
Não é
de hoje que se trata de uma região conflagrada. Em 2000, um grupo de cerca de
300 pescadores autodenominados de Movimento dos Sem Rio, de Atalaia do Norte e
Benjamin Constant, atacou a base do Ituí-Itacoaí e a sede da Funai em Atalaia
do Norte com coquetéis molotov.
Rio
Itacoaí na região da Terra Indígena Vale do Javari, em Atalaia do Norte (AM);
funcionários de quatro bases da Funai na região afirmam que vão paralisar as
operações de controle e fiscalização da entrada e saída do território
Houve
confronto e troca tiros com servidores do órgão indigenista e fiscais do Ibama,
conforme noticiou na época o jornal amazonense A Crítica . A homologação da
Terra Indígena em 2001 culminou em um processo que retirou, mediante
indenização, a população não indígena do Vale do Javari — pessoas que chegaram
à região no começo do século 20, na esteira do primeiro ciclo da borracha.
Uma
parte delas se estabeleceu em Atalaia do Norte depois da homologação e, a
partir daí, o confronto entre indígenas e não indígenas, antes frequentes,
tornaram-se esporádicos. No fim do ano passado, as disputas voltaram a ocorrer.
Liderança
tradicional do Vale do Javari e que participou do processo de demarcação,
Clóvis Marubo afirma que as atividades ilegais no território aumentaram, após o
início do governo de Jair Bolsonaro. Segundo ele, cortes de servidores e o
contingenciamento de recursos têm "empoderado os invasores", o que
preocupa os indígenas da região.
Divulgada
na última quarta-feira, uma carta aberta dos servidores das onze FPEs vai no
mesmo sentido.
Há
poucos servidores nas quatro bases do Javari (nos rios Ituí-Itacoaí,
Jandiatuba, Quixito e Curuçá) e, segundo colaboradores, falta insumos para a
manutenção do controle do acesso ao território onde vivem os povos Marubo,
Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e os de recente contato Tyohom Djapá e
Korubo.
Há
ainda outros dez subgrupos isolados confirmados e mais quatro em estudo, neste
território do tamanho de Portugal. "O enfraquecimento dessas bases e a
falta de respostas do governo está muito preocupante. Sempre houve invasões,
mas agora estão crescendo e rapidamente por causa da falta de fiscalização. O
território nunca esteve tão descoberto e isso pode levar a um conflito maior.
Uma vez que os indígenas se certifiquem que o Estado não está protegendo o
território, eles vão cuidar da própria segurança", diz Marubo.
Confrontos
Entre
servidores e colaboradores da frente de proteção fala-se em uma "tragédia
anunciada". Sinais de confrontos se acumulam, como quando, em meados de
outubro, o pescador foi baleado e deu entrada no hospital de Atalaia do Norte.
A versão corrente no povoado é que ele foi ferido quando pescava perto de uma
das aldeias do povo Korubo. Duas semanas depois, houve o ataque aos dois
adolescentes Korubos, atacados por pescadores enquanto pescavam em uma lagoa.
A
primeira das quatro aldeias Korubo está a 30 minutos de barco da base do
Ituí-Itacoaí. Na avaliação de Conrado Otávio, coordenador do Centro de Trabalho
Indigenista (CTI) que trabalha no Vale do Javari desde 2004, há risco iminente
para essas populações. "Você vai somando os pontos e percebe que esses
povos estão desprotegidos. Nunca houve esse despudor de agressão e intimidação
a servidores e indígenas, isso de atirar diretamente contra eles. Dada a
vulnerabilidade dos povos indígenas, sobretudo dos isolados, os riscos são
muitos grandes", diz Otávio.
Sinais
de confronto vêm se acumulando entre etnias indígenas na região e pescadores e
caçadores da região de Atalaia do Norte, no Amazonas, cidade que tem o terceiro
pior IDH do país
Pirarucu,
tracajá, queixada e anta são os animais mais procurados pelos pescadores e
caçadores. Enquanto um tracajá é vendido por pelo menos R$ 100, um pirarucu
ainda jovem não é vendido por menos de R$ 1 mil na região. Pela extensão e
dificuldade de navegação nos rios do Vale do Javari, cada expedição, que
costuma contar com entre 6 e 8 homens, precisa toda a capacidade de carga da
canoa para ser lucrativa.
Já a
Associação dos Pescadores de Atalaia do Norte afirma tentar organizar os
pescadores que praticam o manejo legal - algumas famílias ribeirinhas - nos
lagos em volta da Terra Indígena. No entanto, esses lugares já foram muito
explorados e não são suficientes para a demanda externa, sobretudo peruana e
colombiana. Por isso, segundo colaboradores das FPE, parte dos ribeirinhos que
saíram do território indígena na época da demarcação, ficaram sem o sustento e
passaram a recorrer a atividades ilegais. A associação tenta conter a entrada
de pescadores e caçadores de outras regiões, mas sem sucesso.
Investigações
apontam que o assassinato do colaborador da Funai Maxciel dos Santos Pereira,
no início de setembro, tem relação com essa economia ilegal. Maxciel passeava
com a família na principal avenida de Tabatinga quando foi baleado. Meses
antes, ele havia organizado uma operação que apreendeu grande quantidade de
pesca e caça ilegal. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal.
Outro
fator que aumenta a pressão no Vale do Javari é o fato de que muitos dos
pescadores e caçadores viviam na terra indígena antes da demarcação. "Eles
sabem onde está a fartura e é justamente próximo das nossas aldeias, porque não
fazemos uso comercial da selva. Mas tem sido tanta a caça e a pesca que já está
afetando a nossa comida", afirma Varney Thoda Kanamari, vice-coordenador
da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Kanamari
espera que o governo reforce as bases de proteção no Javari para coibir os
invasores. Caso os servidores e colaboradores da Funai mantenham o plano de
paralisar as atividades na semana que vem, ele afirma que Kanamari, Matsés,
Matís e Mayoruna estão se organizando para criar um grupo que ocupe esses
lugares.
"Espero
que não chegue a esse ponto, mas, se acontecer, nós vamos lá, como voluntários
mesmo e sem receber nada para fazer uma barreira de proteção. Vamos gerir nós
mesmos essa situação, porque, se não, vão entrar muito mais invasores",
diz.
Fonte/Foto: Rodrigo Pedroso, de Tabatinga (AM) para a BBC News Brasil/Bruno Kelly –
Amazônia Real
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