ARTIGO DEDOMINGO: ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA



por Lúcio Flávio Pinto (*)

Imagine-se prestando depoimento a um juiz federal, em audiência pública de instrução processual, e se sair com a frase “fiquei muito puto da vida”. Foi esta uma das expressões chulas que Lula usou diante de Sérgio Moro, no seu depoimento, em Curitiba.
Em certos momentos, ele travou discussão com o juiz. Em outras ocasiões, o acusou ou duvidou da sua sinceridade e boa informação. E quase sempre falou como se projetasse suas palavras para além dele, diretamente para a câmera que gravava a sessão, como se estivesse num palanque político.
Moro precisou de doses monumentais de paciência, autocontrole e discernimento para não dar um murro na mesa e encerrar a audiência, ou bater boca com Lula, ou impor o peso da sua autoridade formal e moral. Lula se comportou como um agente provocador.
No entanto, ressaltou que não estava ali como uma pessoa física qualquer, mas como um ex-presidente da república. No entanto, se comportou como um desarvorado desrespeitador das regras da audiência.
Em outra circunstância, seria obrigado a se enquadrar nas regras da compostura e do respeito à instituição. A dele, de ex-chefe do poder executivo. E a de Moro, de presidente do feito em nome do poder judiciário.
De muita coisa Lula disse não se lembrar. Mas não deixou por menos na autoavaliação. “Fiz a maior capitalização da história da humanidade”, ao autorizar a aplicação de 70 bilhões de reais no aumento do capital da Petrobrás, de forma a transformá-la na segunda maior petroleira do mundo, com as imensas jazidas de óleo do pré-sal.
Sua disposição histórica se baseava no que lhe diziam as pessoas que colocara em cargos-chave da empresa, ocupados por gente como Paulo Roberto Costa, Renato Duque, Nestor Cerveró e Jorge Luiz Zelada, propineiros confessos, que atuavam na estatal como ponta de lança de políticos e empreiteiros sanguessugas.
Lula ouviu dizer que Duque estava roubando na Petrobrás. Diligente, chamou-o e cobrou. Duque lhe respondeu que era mentira. O presidente da república deu-se por satisfeito e nunca mais voltou ao assunto. Não se preocupou com os demais porque não foram indicados pelo PT. Eram cotas cativas de outros partidos que davam respaldo político a Lula e vice-versa.
A segunda maior petroleira do mundo não exigia maior cuidado. Lula nem se deu ao trabalho de tomar conhecimento do famoso e polêmico balanço da empresa, que admitiu o prejuízo de R$ 6 bilhões por corrupção, em grande medida praticada sob o governo Lula.
Como se fosse uma versão adaptada e invertida de Joesley Batista, que comandou sua própria delação premiada com o Ministério Público Federal, Lula pretendeu permitir-se a última palavra da audiência, certamente esperando que ela ecoasse mais do que tudo o que antes foi dito.
Questionou a condição de Moro de imparcialidade no julgamento. Colocou-o diante de uma das parábolas bem Lula: “Eu vou chegar em casa amanhã e eu vou almoçar com oito netos e uma bisneta de seis meses que posso olhar na cara dos meus filhos e dizer que eu vim a Curitiba para prestar depoimento a um juiz imparcial?”, perguntou.
O juiz quis repor as coisas na forma certa e óbvia: “Não cabe ao senhor fazer esse tipo de pergunta para mim”. Acostumado ao estilo Lula, porém, respondeu afirmativamente. Mas Lula refugou a resposta: “Porque não foi o procedimento na outra ação”. Sentindo-se ameaçado pela armadilha, Moro retrucou: “Eu não vou discutir a outra ação, minha convicção foi que o senhor é culpado”.
Como sabe quem frequenta fóruns ou tem alguma noção de direito, de decisão judicial, com a qual não se concorda, não se discute: recorre-se. Luiz Inácio Lula da Silva ainda se considera acima do bem e do mal, tão acima das coisas dos homens, como sua justiça, que merece tratamento especial, como o que reivindicou para José Sarney, por também ser ex-presidente. Desinteressadamente, é claro, Lula, afinal, se acha inimputável.


(*) Lúcio Flávio Pinto é jornalista profissional desde 1966. Percorreu as redações de algumas das principais publicações da imprensa brasileira. Durante 18 anos foi repórter em O Estado de S. Paulo. Em 1988 deixou a grande imprensa. Dedicou-se ao Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que escreve sozinho desde 1987, baseada em Belém.
No jornalismo, recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, da Federação Nacional dos Jornalistas. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace e, em 2005, o prêmio anual do CPJ (Comittee for Jornalists Protection), de Nova York.

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