BELO MONTE: A ANATOMIA DE UM ETNOCÍDIO
- por Elaine Brum
A procuradora Thais Santi, em sua sala no Ministério Público Federal de Altamira, no Pará / Lilo Clareto (Divulgação) |
A procuradora da República
Thais Santi conta como a terceira maior hidrelétrica do mundo vai se tornando
fato consumado numa operação de suspensão da ordem jurídica, misturando o
público e o privado e causando uma catástrofe indígena e ambiental de
proporções amazônicas
Quando
alguém passa num concurso do Ministério Público Federal, costuma estrear no que
se considera os piores postos, aqueles para onde os procuradores em geral não
levam a família e saem na primeira oportunidade. Um destes que são descritos
como um “inferno na Terra” nos corredores da instituição é Altamira, no Pará,
uma coleção de conflitos amazônicos à beira do monumental rio Xingu. Em 2012,
Thais Santi – nascida em São Bernardo do Campo e criada em Curitiba, com breve
passagem por Brasília nos primeiros anos de vida – foi despachada para
Altamira. Ao ver o nome da cidade, ela sorriu. Estava tão encantada com a
possibilidade de atuar na região que, no meio do curso de formação, pegou um
avião e foi garantir apartamento, já que as obras da hidrelétrica de Belo Monte
tinham inflacionado o mercado e sumido com as poucas opções existentes. Thais
iniciava ali a sua inscrição na tradição dos grandes procuradores da República
que atuaram na Amazônia e fizeram História.
Ela
já teve a oportunidade de deixar Altamira três vezes, a primeira antes mesmo de
chegar lá. Recusou todas. Junto com outros procuradores do MPF, Thais Santi
está escrevendo a narrativa de Belo Monte. Ou melhor: a narrativa de como a
mais controversa obra do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento dos
governos Lula-Dilma, um empreendimento com custo em torno de R$ 30 bilhões,
poderá ser julgada pela História como uma operação em que a Lei foi suspensa. E
também como o símbolo da mistura explosiva entre o público e o privado, dada
pela confusão sobre o que é o Estado e o que é a Norte Energia S.A., a
empresa que ganhou o polêmico leilão da hidrelétrica. Fascinante do ponto de
vista teórico, uma catástrofe na concretude da vida humana e de um dos
patrimônios estratégicos para o futuro do planeta, a floresta amazônica.
A
jovem procuradora, hoje com 36 anos, conta que levou quase um ano para ver e
compreender o que viu – e outro ano para saber o que fazer diante da enormidade
do que viu e compreendeu. Ela se prepara agora para entrar com uma ação
denunciando que Belo Monte, antes mesmo de sua conclusão, já causou o pior: um
etnocídio indígena.
Nesta
entrevista, Thais Santi revela a anatomia de Belo Monte. Desvelamos o ovo da
serpente junto com ela. Ao acompanhar seu olhar e suas descobertas, roçamos as
franjas de uma obra que ainda precisa ser desnudada em todo o seu significado,
uma operação que talvez seja o símbolo do momento histórico vivido pelo Brasil.
Compreendemos também por que a maioria dos brasileiros prefere se omitir do
debate sobre a intervenção nos rios da Amazônia, assumindo como natural a
destruição da floresta e a morte cultural de povos inteiros, apenas porque são
diferentes. O testemunho da procuradora ganha ainda uma outra dimensão no
momento em que o atual governo, reeleito para mais um mandato, já viola os direitos indígenas
previstos na Constituição para implantar usinas em mais uma bacia hidrográfica
da Amazônia, desta vez a do Tapajós.
Thais
Santi, que antes de se tornar procuradora da República era professora
universitária de filosofia do Direito, descobriu em Belo Monte a expressão
concreta, prática, do que estudou na obra da filósofa alemã Hannah Arendt sobre os
totalitarismos. O que ela chama de “um mundo em que tudo é possível”. Um mundo
aterrorizante em que, à margem da legalidade, Belo Monte vai se tornando um
fato consumado. E a morte cultural dos indígenas é naturalizada por parte dos
brasileiros como foi o genocídio judeu por parte da sociedade alemã.
A
entrevista a seguir foi feita em duas etapas. As primeiras três horas no
gabinete da procuradora no prédio do Ministério Público Federal de Altamira.
Sua sala é decorada com peças de artesanato trazidas de suas andanças por
aldeias indígenas e reservas extrativistas. Na mesa, vários livros sobre a
temática de sua atuação: índios e populações tradicionais. Entre eles, autores
como os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha. A
sala é cheirosa, porque as funcionárias do MPF costumam tratar Thais com mimos.
Carismática, ela costuma produzir esse efeito nas pessoas ao redor. Dias antes
da entrevista, participou da comemoração dos 10 anos da Reserva Extrativista
Riozinho do Anfrísio, na Terra do Meio. Thais dormiu numa rede na porta do
posto de saúde que sua ação ajudou a implantar, a alguns metros de onde
acontecia um forró que durou a noite inteira. O sono era interrompido ora por
casais mais animados em sua ênfase amorosa, ora por um atendimento de
emergência no posto de saúde. Impassível, Thais acordou no dia seguinte
parecendo tão encantada com todos, como todos com ela. “Noite interessante”,
limitou-se a comentar.
A
entrevista é interrompida pela chegada afetuosa de uma funcionária trazendo
primeiro café e água, depois peras. É bastante notável, nas respostas de Thais,
o conhecimento teórico e a consistência de seus argumentos jurídicos. Embora
visivelmente apaixonada pelo que faz, em sua atuação ela se destaca por ser
conceitualmente rigorosa e cerebral. Mas, na medida em que Thais vai explicando
Belo Monte, sua voz vai ganhando um tom indignado. “Como ousam?”, ela às vezes
esboça, referindo-se ou à Norte Energia ou ao governo. Como ao contar que, ao
votar na última eleição, deparou-se com uma escola com paredes de contêiner,
piso de chão batido, as janelas de ferro enferrujado, as pontas para fora, a
porta sem pintura, nenhum espaço de recreação e nem sequer uma árvore em plena
Amazônia. Uma escola construída para não durar, quando o que deveria ter sido
feito era ampliar o acesso à educação na região de impacto da hidrelétrica.
A
segunda parte da entrevista, outras três horas, foi feita por Skype. Reservada
na sua vida pessoal, quando Thais deixa escapar alguma informação sobre seu
cotidiano, suas relações e seus gostos, de imediato pede off. “Não tenho nem
Facebook”, justifica-se. Dela me limito a dizer que acorda por volta das 5h30
da manhã, que faz yoga e que todo dia vai admirar o Xingu. Em seu celular, há
uma sequência de fotos do rio. Uma a cada dia.
LEIA A MATÉRIA NA INTEGRA.
ACESSE> http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086.html
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