PARÁ: O PARADOXO DA RIQUEZA SEM PROGRESSO
Pelo porto de São Luiz,
escorre riqueza mineral do Estado. Cofres da Vale enchem-se; população
empobrece e sofre com serviços públicos degradados
Por Lúcio Flávio Pinto, em A Vale que vale
Um número cada vez maior
de paraenses, sobretudo aqueles que têm a oportunidade de confrontar o que
acontece na sua terra com outras realidades, dentro e fora do Brasil, se
inquietam diante de uma realidade que se impõe: embora o Pará cresça, não
acompanha a evolução dos Estados que já estavam no topo do ranking nacional ou
que a ele se agregam em função do seu melhor desempenho recente. Como isso
acontece, se o Pará é tão rico em recursos naturais?
A resposta poderia começar
a ser buscada trocando-se o sinal interrogativo pelo afirmativo: isso acontece
porque o Pará é rico em recursos naturais. Um território tão bem dotado de
minérios, água, florestas, solos e espaço parte com vantagens comparativas (ou
competitivas) invejáveis. Não significa que alcançará primeiro o ponto de
chegada. Pode dar-se exatamente o contrário: confiando na abundância de seus
bens naturais, que constituem um invejável capital físico, subestima ou
desdenha sua capacidade de utilizar esse potencial. Não investe na qualificação
humana o suficiente para saber o que fazer (e como fazer) para tirar o maior
proveito possível desses atributos geográficos.
O Pará, que tem o segundo
mais extenso território da federação brasileira e sua nona maior população, cai
vertiginosamente de posição quando a mensuração considera os fatores sociais. A
esmagadora maioria da sua população vive mal, com serviços de saúde e de
alimentação precários e insatisfatórios, e uma educação que se situa dentre as
piores do país, no rabo da fila de uma rede pública que se degrada, com
honrosas exceções. Os demais serviços também não acompanham a demanda,
obrigando o cidadão comum (incapaz de pagar para atingir o limbo das exceções)
a perder tempo e energia, que lhe farão falta na sua progressão pessoal, com as
conhecidas consequências nocivas para a coletividade.
Para exemplificar esse
despreparo não é necessário nem analisar os casos mais graves de dilapidação,
como a destruição da floresta, a degradação dos solos ou a poluição dos cursos
d’água. Examinemos o caso mais emergente num contexto de urgências numerosas desencadeadas
pela péssima abordagem da natureza na “fronteira” paraense: os minérios. Eles
constituem 85% da nossa pauta de exportações, que respondem por nossa principal
importância para o Brasil: somos o quinto Estado exportador (na média dos
últimos anos) e o terceiro que mais gerou divisas (em 2009). Nenhuma outra
contribuição paraense é mais expressiva à riqueza nacional (somos o 21º em PIB
per capita, o melhor índice para medir o resultado interno do aproveitamento
econômico).
Qualquer um haverá de dar
a receita para acabar com essa anomalia de extrair sempre mais minérios sem se
desenvolver: deixar de vender matérias primas e passar a produzir bens
manufaturados. É o esquema de muitas décadas e séculos. Foi assim que os
Estados Unidos, país equiparável ao nosso (e tentação fácil em muitos estudos
de história comparada), deixaram de ser colônia inglesa para desbancar a matriz
da sua dominação imperial. Também os americanos são bem dotados de recursos
naturais. Só que não se deitaram em berço esplêndido: se desenvolveram
tecnologicamente à base de educação de primeira e ciência prioritária.
Não podemos seguir a mesma
fórmula porque o mundo mudou. Sua principal mudança foi ter-se tornado plano,
como argumenta o jornalista Thomas Friedman em seu livro perspicaz sobre a
globalização. Não vou considerar os efeitos nocivos desse processo. Apenas me
deterei no que se tornou inquestionável: a universalização, como jamais houve
antes e nunca imaginamos que viesse a acontecer. Antes se falava em
internacionalização, com um sentido negativo e tenso tão caro à geopolítica
aplicada na Amazônia. A Amazônia passou a fazer parte do mundo antes de se
integrar ao próprio país, seguindo um curso mais inconstante e traumático na
etapa da nacionalização do que na da internacionalização, que a precedeu.
Tornamo-nos – e
continuamos a ser – brasileiros, mas por dentro das nossas veias geográficas e
culturais também fluem fluxos derivados de uma matriz (ou de várias delas)
externa. Hoje, mais do que nunca, é impossível entender a Amazônia sem situá-la
no contexto mundial. Tanto para manter a forma espoliativa da utilização dos
seus recursos (naturais e humanos) como para mudá-la. Sem considerar sua
realidade física específica, toda análise sobre a região se torna conservadora,
mantenedora do status quo, incapaz de formular um modo novo de relação do homem
com a natureza e com os outros homens. Mas o regionalismo estrito e o
nacionalismo são bitolas a impedir a visualização da realidade e da verdade
concreta.
Quando via as imagens
insólitas da prova de Fórmula 1 realizada noturnamente em Xangai, a mais
ocidental das metrópoles chinesas, me veio uma curiosidade típica dessa
planetarização: quanto de minério de Carajás havia naqueles enormes prédios de
aço que emergiam no horizonte como pano de fundo ainda mais insólito para a
corrida de automóveis? Minério do melhor, como não há outro nas entranhas da
Terra. Logo também me veio uma ruminação: não aconteceu exatamente assim quando
o ouro das Minas Gerais, depois do transbordo em Portugal, foi insuflar o
embelezamento e enriquecimento da City de Londres?
Nas cidades históricas
mineiras ficaram testemunhos impressionantes de contrafação a essa brutal
extração mineral, que até hoje – e cada vez mais – nos encantam e causam
admiração. Mas quanto essa riqueza retida representa da que atravessou o
oceano? Uma minúscula parte, como a que nos fica de Carajás, de onde sai o
maior trem de carga do mundo para, em nove viagens diárias até um dos maiores
terminais marítimos do planeta, em São Luiz do Maranhão, colocar nos navios
transoceânicos 30 milhões de dólares a cada dia. Volume que aumenta com a
incorporação de outros bens minerais, como manganês, agora cobre e, daqui a
pouco, níquel.
Só que a mera
verticalização da produção pode não se traduzir por maior retenção de valor,
mesmo quando viável economicamente. Hoje é mais vantajoso produzir alumina, o
insumo, do que alumínio, o bem transformado (que só é classificado como
semielaborado porque o classificador despreza o componente de energia nele
embutido). Não só pelo preço, atiçado pela demanda chinesa (carente de alumina,
mas não de metal), como pelo custo da energia para a fundição. Foi por isso
que, em 2010, a antiga Companhia Vale do Rio Doce decidiu se desfazer da
Valesul, a fábrica de alumínio que começou a operar no Rio de Janeiro três anos
antes da Albrás em Barcarena, sustentada numa perna falsa, a da energia barata
e abundante. A Vale vendeu a fábrica por metade do seu valor para se livrar do
prejuízo e da insolvência operacional.
A definição do que e como
produzir envolve componentes muito mais sofisticados e abrangentes do que
antes. A definição pode ser conjuntural, acompanhando a flutuação do mercado,
mas tem que combinar essa circunstância com uma visão de longo prazo. Para
isso, existe régua e compasso. Mas não as informações, o enchimento que dá
validade às fórmulas científicas. É preciso ir atrás delas, desentocá-las,
dar-lhes significado e transformá-las em ferramentas operacionais.
Com elas podemos chegar à
conclusão de que poderia até ser melhor continuar a minerar se fosse rompida a
dependência da China a que nos impôs a busca obsessiva da Vale por faturamento
e lucro, num raciocínio imediatista correto apenas da perspectiva financeira,
que hoje a caracteriza. Outros tantos ajustes, corretivos e inovações se impõem
para que não continuemos a assistir impotentes a essa hemorragia mineral, que
se tornou até mais volumosa do que a sangria vegetal, dois dos males que tornam
o organismo territorial do Pará incapaz de suprir as necessidades da sua
população, dentre as quais está a esperança por um futuro melhor. Esse futuro
se apresenta no horizonte como miragem, que não nos chega nem nós a ele
conseguimos chegar.
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