ARTIGO DEDOMINGO | "A HORA É AGORA"

- por Lúcio Flávio Pinto*




 

Raul Martins Bastos é um dos mais competentes e dignos jornalistas brasileiros, a quem conheci e com quem comecei a trabalhar há exatos 50 anos, na redação de O Estado de S. Paulo. Abrindo caminho no rumo dos 80 anos em meio a problemas de saúde, ele continua capaz de se indignar e de dar sua contribuição para o que considera o bem do Brasil. Continua a ser um observador sereno e perspicaz da realidade. Mas também um altivo cidadão.

 

Partilho com meus leitores a mensagem que ele encaminhou aos muitos amigos que conquistou.

 

_________________________

 

Esta foto não é –como pode parecer – o efeito de uma bomba.

 

É um símbolo dos tempos que vivemos.

 

É uma cratera das centenas que foram abertas pelos garimpeiros do PCC e do entorno miliciano-empresarial-policial em terras indígenas sem que o governo faça nada, pelo contrário, permite e incentiva. Um crime continuado contra os povos indígenas.

 

É contra as arvores, as florestas, as águas, nossas riquezas naturais, um patrimônio que está sendo do dilapidado com fúria e criminosamente sob o beneplácito, quando não estímulo do governo federal e dos seus satélites.

 

450 mil pessoas morreram até agora na pandemia. Até agora o Brasil mal vacinou um pouco mais de 20% da sua população, na primeira dose e pouco mais de 10% na segunda. Vão morrer muitos, muitos, muito mais brasileiros.

 

Mais de 2 mil pessoas morrem por dia quase todos os dias  e tudo continua do mesmo jeito.

 

A CPI está comprovando que não comprar vacinas e boicotar todas as medidas sanitárias foram ações deliberadas e executadas pelo governo central, um crime, um crime, meu Deus: caminhamos para os 500 mil mortos. Estamos diante da maior tragédia da nossa história.

 

Há milhares e milhares de brasileiros passando fome, muita fome e vivendo da caridade alheia e o governo central dá a eles 150 reais por mês e só por alguns poucos  meses e olhe lá, muitos dos miseráveis estão sendo excluídos por alegadas “irregularidades” por  investigados como se fossem criminosos quando são faminto desamparados..

 

Está mais do que provado que só a ampla imunização e medidas sanitárias-chave para estancar as mortes e a propagação da doença para voltarmos a ter uma retomada econômica segura e continua. Sem ela, a economia deu uma enorme engasgada e quando melhora é aos soluços. O desemprego teve o maior crescimento de sua história. A inflação dobrou de um mês para outro e sinaliza alta. Deus queira que não seja descontrolada.

 

 Há um descaramento criminoso na generosa destinação do dinheiro público para os militares e apaniguados civis, para os deputados do centrão e adjacências, a bancada do sim, senhor, desde que eu seja recompensado. É um dinheiro enorme e imoral, mais imoral ainda nas atuais circunstâncias. E há mais dinheiro sendo providenciado, uma não explicada, misteriosa, imoral e robusta verbona para as mesmas finalidades: blindar o governo e apoiá-lo não importante no quê.

 

É uma equação perversa e criminosa: fortunas para poucos parlamenteares e apaniguados x 150 reais para milhões e milhões dos deserdados de tudo e os mais assolados pela pandemia. 150 reais por mês, durante alguns meses – e olhe lá que estamos de olho em vocês.

 

A ciência, o conhecimento, a inteligência são absurdamente hostilizadas e perseguidas como se não fossem um ativo a ser valorizado e não imbecilmente combatido e perseguido.

 

Há um golpe sendo gestado agora nem mais com tanto cuidado e reserva, como até então.

 

Ontem, na estapafúrdia e ridícula inauguração de uma ponte de madeira de 14 metros numa estrada de terra abandonada em São Gabriel da Cachoeira, com a presença de militares do comando da Amazônia, o presidente tratou sem rodeios da sua reeleição e o que ela significa tendo em vista dos objetivos comuns dele e das forças armadas na condução do País e do tratamento dos seus inimigos, como se referem a seus adversários políticos. Desacreditar as urnas eletrônicas e alegar fraude nas eleições será o ato final para tentar o golpe, se ele não for consumado antes.

 

Pode ser que você acredite que mesmo diante desse horror que estamos vivendo nada pode ser feito e no Brasil é assim mesmo, paciência, e que nada se pode fazer.

 

Desculpe, mas isso é um equívoco, que pode ser um equívoco fatal para a nossa democracia, a constituição de 88 e da nossa liberdade e dignidade.

 

É preciso que a gente tire do fundo da gaveta da nossa consciência o NÃO e comece a usá-lo como direito; mais do que direito, obrigação.

 

É claro que dentro das nossas possibilidades e das nossas convicções democráticas. Sem deixar de colocar nessa balança tanto a nossa preocupação e indignação como a legitima vontade de postular a mudança do que está acontecendo no nosso Brasil pelo simples e verdadeiro motivo de o Brasil estar indo para o brejo e pelo nosso direito e obrigação de não deixar que isso aconteça. O Brasil é de todos nós que queremos o seu bem e o bem do seu povo e não do capitão-presidente e/ou quem mais vier a sentar naquela cadeira.

 

Há entidades, organizações e muitas pessoas de bem dizendo não. Prestar atenção no que todos elas dizem é um bom começo, mas no meu entendimento é preciso ir além e batalhar para amplificar o alcance do que dizem, denunciam e propõem.

 

A até então eficiente e ativa ação nas redes sociais começa a ter rachaduras e, embora ainda seja favorável ao governo, dá mostras de descontentamento e desaprovação do presidente e do governo. Principais motivos: falta de vacinas e aumento do desemprego. Não é mais inexpugnável, portanto. (O Estado de S. Paulo, 8 de maio, pagina A4). Nas pesquisas de opinião pública isso está escancarado e cresce a cada mês.

 

Nem de longe estou tentando ensinar o sermão ao vigário.

 

É mais do que evidente que o que deve prevalecer, balizar e comandar as ações de cada um de nós são as nossas convicções ao lado vontade, disposição e disponibilidade. Cada qual sabe e cuida de si.

 

É na verdade um pedido de ser o que fomos quando saímos da inércia e começamos a dizer não para a ditadura.

 

Lá a luta era para resgatar a democracia e a liberdade.

 

Aqui a luta é para defender a democracia, a liberdade e os direitos que foram conquistados pela sociedade pós-ditadura e que estão sob grave ameaça, quando não já usurpados.

 

Resumindo: recorro a um querido companheiro do meu tempo de Estadão, o Frederico Branco, um sábio. Ele tinha uma frase modelar para os limites de nossas vidas e consciência:

 

Tem coisa que pode, tem coisa que não pode.

 

 Continuar desse jeito com evidencias que vai piorar, não pode.

 

 Desculpe se você achar que eu passei da conta, dos limites.

 

 Ainda acredito ser minha obrigação fazer o que estiver ao meu alcance para impedir que o Brasil não trilhe novamente o caminho tenebroso da negação dos valores da democracia e da liberdade. Tomei a liberdade de compartilhar esse sentimento com vocês, meus velhos amigos, meus companheiros.

 

“Desculpe alguma coisa” era assim que terminavam lá na Mooca, de onde eu vim, as conversas difíceis ou delicadas.

 

Desculpe alguma coisa,

 

Um abraço do Raul Bastos.

 

 


*Lúcio Flávio PintoJornalista profissional desde 1966. Percorreu as redações de algumas das principais publicações da imprensa brasileira. Durante 18 anos foi repórter em O Estado de S. Paulo. Em 1988 deixou a grande imprensa. Dedicou-se ao Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que escreve sozinho desde 1987, baseada em Belém

No jornalismo, recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, da Federação Nacional dos Jornalistas. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace e, em 2005, o prêmio anual do CPJ (Comittee for Jornalists Protection), de Nova York.

Tem 21 livros individuais publicados, todos sobre a Amazônia, os últimos dos quais Amazônia Decifradada e A Questão Amazônica. É co-autor de numerosas outras publicações coletivas, dedicadas à Amazônia e ao jornalismo. Recebeu o Prêmio Wladimir Herzog de 2012 pelo conjunto da sua obra. Foi considerado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, com sede em Paris, como um dos mais importantes jornalistas do mundo, o único selecionado no Brasil para essa honraria.

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.