ARTIGO DEDOMINGO | A CORRUPÇÃO GIGANTE DAS HIDRELÉTRICAS
- Por Lúcio Flávio Pinto (*)
Quatro das maiores obras
da história republicana brasileira foram construídas na Amazônia. São quatro
hidrelétricas, que exigiram investimento superior a 100 bilhões de reais. A
mais antiga delas, a usina de Tucuruí, começou a ser construída no auge da ditadura
militar, em 1974. A primeira das 12 gigantescas turbinas da sua primeira fase
foi inaugurada 10 anos depois, em 1984, no fim do mandato do último general a
ocupar a presidência da república, João Figueiredo.
A última das 11 máquinas
da segunda fase foi entregue durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, em
1997. Com potência de 8,3 mil megawatts, Tucuruí era então a quarta maior
hidrelétrica do mundo e a primeira totalmente nacional. Acima dela, só Itaipu,
com 14 mil MW, mas só metade dessa capacidade brasileira. Tucuruí deveria ter
custado 2,1 bilhões de dólares. A conta de chegada ultrapassou US$ 10 bilhões.
As outras três obras são
da democracia, restaurada em 1985. Duas delas no rio Madeira, o maior afluente
do Amazonas, em Rondônia. Em 2012 foi inaugurada a usina de Santo Antônio, a 4
maior, e a de Jirau, a 5ª, em 2013. A maior de todas, de Belo Monte, no rio
Xingu, no Pará, que será a 4ª maior do mundo em potência nominal (11,2 mil MW),
foi inaugurada em 2016, a um custo de quase R$ 40 bilhões.
Em comum em todas elas
terem começado a ser construídas e entrado em operação durante os governos do
PT, desde Lula, em 2003, até Dilma, em 2016. Foi o período em que mais
hidrelétricas foram construídas no Brasil, principalmente na Amazônia. Graças a
esses mastodontes e a outros 16 empreendimentos, a região responde agora por
40% da energia que vem dos rios e 25% da capacidade total de geração do Brasil.
O Plano Decenal de 2010,
produzido pelo ministério de Minas e Energia, chefiado por Dilma Rousseff,
previa o incremento, de 265% na energia oriunda da Amazônia, reduzindo a
participação das demais regiões cairá: do Sudeste/Centro-Oeste, de 60% para
46,6%; e do Sul, de 16% para 14% (apenas o Nordeste terá um ligeiro aumento, de
14% para 17%). A Amazônia se tornará, de vez, a grande província energética
brasileira.
É esse o pano de fundo da
celeuma criada em torno da associação do presidente do Supremo Tribunal
Federal, Dias Toffoli, à intermediação de agentes públicos para favorecer a
construção de Belo Monte. O impacto causado pela referência a uma autoridade de
estatura tão elevada tirou o foco da grandiosidade das obras envolvidas em
transações ilícitas, confessadas pelo principal personagem das tramas de corrupção
do outro lado do balcão oficial.
O empresário Marcelo
Odebrecht, que relatou os fatos divulgados pela imprensa, assumiu o controle da
empreiteira, no lugar do pai. Emílio, por sua vez, sucedeu o criador da
empresa, Norberto Odebrecht, transformando-a na líder do setor, graças a obras
realizadas a partir do governo Lula, muitas com generoso financiamento do
BNDES. Seu filho levou a empreiteira aos píncaros, com faturamento anual de R$
100 bilhões e 200 mil empregados diretos e indiretos, até seu esquema de
propinas ser descoberto e desfeito pela Operação Lava-Jato. A partir da prisão
prolongada, Marcelo decidiu contar tudo que fez, como a compra de favores
oficiais para a empresa em Belo Monte.
As transcrições dos
depoimentos prestados por Marcelo, a partir de e-mails que enviou a dirigentes
da Odebrecht entre 2007 e 2013, por ele complementados no dia 3 e reproduzidos
pela revista eletrônica Crusoé e o site O Antagonista, provocaram a reação
imediata de Dias Toffoli. O presidente do STF, de ofício (ou seja, sem ser
provocado) instaurou inquérito para defender-se dos ataques, nomeando o colega
Alexandre de Moraes relator do procedimento.
O nome do ministro não foi
citado no documento nem lhe foi atribuída qualquer participação no esquema de
corrupção, mas a operação foi descrita em detalhes pelo seu autor, o próprio
Marcelo. A negociação para favorecer a participação da Odebrecht na licitação,
a mais valiosa do Programa de Aceleração do Crescimento petista, foi promovida
por Emílio Odebrecht e o presidente Lula (“o amigo do meu pai”, segundo
Marcelo).
Quando o contato não era
diretamente com Lula, seu ministro da Fazenda, Antônio Palocci, era o
intermediário. Em janeiro de 2007, por exemplo, Palocci levou o tema a Lula,
que apresentara “um pedido especial” a Emílio. Em uma mensagem, Marcelo observa
que Lula não deveria fazer novos pedidos, mas “se o fizer, será mais um
crédito”.
Foi intensa a disputa de
bastidores pela licitação, realizada em 2010 (ano da primeira eleição de Dilma)
entre as principais empresas pela construção da usina, não só pelo seu alto
valor, como pelo atrativo oficial: o BNDES financia, com dinheiro barato, 80%
do custo, que partiu de R$ 19 bilhões e já chegou ao dobro.
Escreveu Marcelo: “Todas
as empresas até então interessadas no leilão acabaram se unindo em um único
consórcio para com isto tentar viabilizar uma proposta que atendesse as
limitações do leilão. Foi este movimento que fez com que o governo promovesse o
consórcio alternativo que acabou por vencer o leilão”.
Marcelo anota, em abril de
2010, seis meses antes do anúncio do resultado da licitação: “por ser a única
empresa que não tinha concordado em pagar a propina solicitada para Belo Monte.
A negativa tinha como uma de suas sustentações a existência da Planilha
Italiano [de Palocci] e o crédito já existente nela referente à agenda da área
de energia”.
A pressão era feita por
João Vaccari Neto, tesoureiro do PT, “referente ao pedido de propina para Belo
Monte, o qual era negado usando entre os argumentos a Planilha Italiano e um crédito
nela existente, de forma que caso fosse atendido o pedido de Vaccari o
respectivo valor teria que ser abatido na Planilha Italiano”, insiste Marcelo.
Deduz-se dessas anotações
que havia duas frentes no PT tratando da propina cobrada pelo partido (1% do
valor da obra) e que Vaccari, talvez com mais poder no partido, não queria que
do seu quinhão fosse descontado o adiantamento feito a Palocci, o que levou a
Odebrecht a suspender o entendimento com o tesoureiro.
O resultado, anotou
Marcelo, é que surgiu uma nova planilha, a do ministro da Fazenda, Guido
Mantega, ligado a Dilma, “e, portanto, o saldo na conta corrente com Palocci
(Planilha Italiano) era de Lula (amigo de EO [Emílio Odebrecht])”.
Quem atuou nos bastidores
para organizar os entendimentos para um final feliz num leilão com tanta
disputa entre poderosos e um agressivo esquema de corrupção? Um expert em
bastidores e agente competente na matéria: Antônio Delfim Netto.
Aos 87 anos, Delfim foi
citado pela primeira vez como personagem da história de Belo Monte. Flávio
Barra, alto executivo da Andrade Gutierrez, preso pela Operação Lava-Jato,
disse em delação premiada, que a empreiteira pagou propina de 15 milhões de
reais ao ex-ministro e ex-deputado federal. Teria sido uma “gratificação” por
ele ter ajudado a montar consórcios que disputaram a obra.
O dinheiro teria chegado a
Delfim através de contratos fictícios de empresas de um sobrinho dele, Luiz
Apolônio Neto, com a Andrade Gutierrez, na época a segunda maior empreiteira do
país. Não teria havido, porém, prestação de serviços, segundo Barra, o que
caracterizaria a ilicitude.
Por ironia, a participação
espúria de Delfim foi apontada no caso da hidrelétrica de Tucuruí, em 1976. A
fonte de informações foi um relatório do coronel Raimundo Saraiva, adido
militar na embaixada do Brasil em Paris. Ele acusou, em 1976, o então
embaixador de participar de negociações nada impolutas para o financiamento das
turbinas, que seriam construídas na França. Os franceses foram os responsáveis
pelos projetos das turbinas e suas instalações. Seis turbinas foram construídas
no Brasil e as outras seis na França, que ainda faturarou juros na transação
bilionária.
O ‘relatório Saraiva’ se
transformou em documento fantasma, foi desacreditado e ninguém mais o cita.
Mesmo com o Partido dos Trabalhadores no controle do governo federal, Delfim
Netto permaneceu no topo do poder até se afastar em 2014, provavelmente receoso
do custo e dos meios da campanha para reeleger Dilma Rousseff.
Numa época em que o
“milagre” econômico brasileiro respirava através das máquinas de dinheiro dos
bancos internacionais, por não dispor de poupança interna, Tucuruí foi como uma
botija de ouro. A “saga” da obra foi pródiga para com a Construtora Camargo
Corrêa. Em 1975, a fortuna do seu dono, Sebastião Camargo, era calculada em 500
milhões de dólares. Uma década depois, quando a usina começou a funcionar, ele
se tornou o primeiro bilionário brasileiro na lista das revistas americanas
Fortune e Forbes.
Tucuruí contribuíra
decisivamente para os 500 milhões de dólares adicionados ao patrimônio de
Camargo. Para se ter uma ideia da grandeza do tema, recorde-se que o engenheiro
Eliezer Batista, recentemente falecido, pai do ex-bilionário Eike Batista,
declarou certa vez que, sem a corrupção na obra de Tucuruí, teria sido
dispensável subsidiar as duas poderosas indústrias de alumínio, de Belém e São
Luís, posicionadas entre as 15 maiores do mundo.
O subsídio concedido às
tarifas de energia da Alumar e da Albrás, responsáveis por 3% do consumo de
todo o Brasil, somou uns US$ 2 bilhões durante a vigência do primeiro contrato,
de 20 anos, encerrado em 2004. O valor equivalia ao de uma metalúrgica de
alumínio inteiramente nova. Pode ser tomado como equivalente à corrupção em
Tucuruí.
No caso de Belo Monte, o
Ministério Público rastreou R$ 3,3 bilhões em propinas, dos quais só conseguiu
documentar R$ 135 milhões, incluídos os R$ 15 milhões que Delfim teria
recebido. Parte desse dinheiro pode ter sido dividido com o compadre de Lula,
Carlos Bumlai. Apesar de ser fazendeiro, ele participou ativamente das manobras
para formar o consórcio vencedor da obra.
Os homens mudam. O enredo
da história, não.
(*) Lúcio Flávio Pinto é jornalista profissional desde 1966. Percorreu as
redações de algumas das principais publicações da imprensa brasileira. Durante
18 anos foi repórter em O Estado de S. Paulo. Em 1988 deixou a grande imprensa.
Dedicou-se ao Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que escreve sozinho desde
1987, baseada em Belém.
No jornalismo, recebeu
quatro prêmios Esso e dois Fenaj, da Federação Nacional dos Jornalistas. Por
seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em
Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace e, em 2005, o prêmio anual do
CPJ (Comittee for Jornalists Protection), de Nova York.
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