AJUDA EXTERNA: UM HERÓI ESCOCÊS NA AMAZÔNIA
A escola criada por Paul Clark no alto Rio Negro
alfabetiza crianças e chacoalha a vida de uma comunidade ribeirinha
Paul Clark é uma espécie
em extinção. Para dedicar a vida a uma causa gigante e invisível, trocou a
gelada, cosmopolita e populosa Glasgow, na Escócia, pela abafada, microscópica
e deserta Gaspar, no Amazonas. De mãos dadas com a mulher, a italiana Bianca Bencivenni,
o escocês criou uma escola de ensino fundamental nos confins da floresta
amazônica, no meio do nada.
O escocês tem a floresta
refletida nos olhos verdes e esculpida no corpo magro e forte. Quando fala –
voz grossa e mansa –, é enfático, preciso, decidido. As rugas enganam a idade.
Gosta de caminhar descalço, com as barras da calça dobradas na altura das
janelas. Nos lábios, sempre um cigarro – mesmo após o enfisema e o infarto que
quase o fulminaram dias antes do último Carnaval. Não larga uma garrafa térmica
com café. A caneta fica pendurada na orelha. Os óculos, no pescoço. É
frenético. Anda muito. Fala. Gesticula. Ensina.
O casal pousou no Brasil
pela primeira vez em 1984. A passeio. Voltaram no ano seguinte. Chegaram a
flertar com um negócio turístico para ganhar a vida na comunidade de Xixuaú.
Desistiram. Em uma nova visita, em meados dos anos 90, um caboclo, tão paciente
e anfitrião nas primeiras lições em terras selvagens, pediu aos gringos vindos
do norte do planeta que ajudassem na alfabetização dos filhos. Paul e Bianca
toparam. Ensinavam inglês, matemática e o que sabiam de português e da vida
para quem quisesse aprender. “No começo, eles é que ensinaram tudo para nós.
Muitas crianças nunca tinham visto um livro, mas sabiam o nome de centenas de
espécies de peixes e plantas”, lembra-se Paul.
À época, a escola da
comunidade de Itaquera, a 15 minutos de barco do Gaspar, estava largada. O
poder público, sabe-se, nunca deu bola para essa bobagem chamada educação. Paul
e Bianca levaram a brincadeira de ensinar adiante. Em 1998, quando a história
começou a ficar mais séria, passaram a sacola entre amigos italianos,
aproximaram-se das mentes e corações mais abertos da comunidade e, assim,
materializou-se o improvável: em uma palafita a beira do rio Jauaperi, no meio
do nada, na divisa entre Amazonas e Roraima, estava criada por um escocês e por
uma italiana uma escola para alfabetizar e educar brasileirinhos.
Com auxílio dos alunos e
sem verba ou apoio governamental, precisaram desenvolver livros didáticos e um
método próprio de ensino, baseado na pedagogia construtivista, com uma boa
pitada de holismo e muita natureza. “Foi necessário produzir um material,
porque o livro de ciências, por exemplo, usava a Groenlândia para falar da
importância da água”, revela Paul, com a irreverente ironia britânica.
Duas décadas de batalha
Centenas de alunos vindos
da comunidade de Itaquera passaram pela escola do escocês, batizada
Vivamazônia. No currículo, língua portuguesa, inglês, matemática, geografia,
história, arte e muito meio ambiente. E é aí que mora o perigo. Paul bate de
frente com uma cultura predatória. Se os filhos aprendem sobre a importância
óbvia da preservação, muitos pais ignoram tal consciência – ou tem outra visão
sobre a floresta. Peitam o escocês, que, sem dar corda ao assunto, conta já ter
apagado incêndios criminosos e escapulido de duas ameaças de morte. “O fato de
um gringo comandar a escola e lutar contra a pesca predatória incomoda cegos
que tratam a floresta como pura mercadoria.”
Paul é vice-presidente da
Associação dos Artesãos do Rio Jauaperi (AARJ), presidida pelo amigo Francisco
Lima, piloteiro da barca que transporta as crianças entre Itaquera e Gaspar e
cujas seis filhas estudaram na Vivamazônia. Além de fazer jus ao nome, a
associação luta contra a pesca predatória e toca um projeto de proteção de
quelônios. Com apoio da Katerre – agência de viagens do empresário paulistano
Ruy Carlos Tone, Paul capitaneia a coleta de ovos de três espécies – iaçá,
irapuca e tracajá – em seis praias, de quatro comunidades: Gaspar, Itaquera,
Samaúma e Xixuaú.
Os moradores engajados no
projeto recebem salário para monitorar as praias e ganham R$ 3 por ovo coletado
e cuidado. Em 2014, a equipe do escocês recolheu 2.339 ovos e por eles zelou
até o nascimento dos filhotes, soltos pelos alunos nas águas do Jauaperi. Em
2015, o número de ovos encontrados e salvos caiu para 1.662. Em 2016, para
1.212. E em 2017, para pouco mais de 600, um indício de que, a despeito dos
esforços da comunidade, o bicho pode estar a caminho da extinção, ao menos
neste trecho do rio.
Paul Clark nasceu 60 anos
atrás, filho de um pai editor de livros e de uma mãe que também amava a leitura.
Passava férias na casa da família na Toscana, região central da Itália. Para
estudar literatura francesa, mudou-se para Florença, também na Toscana, onde
foi corretor de imóveis e conheceu Bianca.
Nesse período na Amazônia,
tiveram dois filhos – Yara, 21 anos, e
Ian, 12, dois loirinhos em meio aos caboclos –, totalmente enturmados e
convertidos ao “amazonismo”. “Ter filhos na Amazônia foi a melhor
escolha que fizemos na
nossa vida”, diz Bianca. Os irmãos remam, pescam, nadam e vivem como se o DNA
europeu fosse só aparência. Em fevereiro, quase perderam o pai. Como já escrito
acima, o escocês foi ao chão às vésperas do Carnaval quando seus alvéolos
acusaram o golpe de uma vida com doses cavalares de fumaça. Ao enfisema
pulmonar, seguiu-se um infarto, que não exigiu cirurgia, mas o colocou de molho
e sob cuidados médicos em Manaus.
Se tivesse batido as
botas, teria perdido o anúncio da notícia pela qual lutou com força nos últimos
16 anos. Dia 5 de junho, depois de incontáveis dribles do governo, da resistência
de parte dos moradores e das já citadas ameaças de morte, Paul comemorou a
criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi. Era uma de suas
maiores demandas desde que fincou raízes na floresta. Ao lado de Francisco, o
escocês liderou audiências públicas, escreveu cartas de próprio punho, coletou
assinaturas e bateu de frente com adversários. “O mérito é da AARJ, mas é uma
vitória pessoal do Paul”, diz Ruy, que acompanhou o processo de perto.
A nova reserva tem 580 mil
hectares – quase quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo – distribuídos
entre os municípios de Rorainópolis, em Roraima, e Novo Airão, no Amazonas.
Nesta imensa área, agora protegida por lei, são encontradas espécies de peixes
ornamentais e comerciais, como surubim, tucunaré, barbado e piranha. Há cerca
de 42 espécies de mamíferos, entre elas, onça-pintada, onça-parda, jaguatirica,
ariranha, tamanduá-bandeira e tatu-canastra. A área é lar de 150 famílias, que
vivem da pesca artesanal e da extração de castanha. “Educação mais preservação
é igual a progresso”, crava Paul, aliviado com a conquista, mas ciente dos
limites do seu heroísmo.
Dia desses, o escocês viu
uma tartaruga amazônica, daquelas de quase um metro de comprimento, ser
capturada e colocada de ponta-cabeça na beira da trave de um campo de futebol
para virar prêmio de um torneio de cobrança de pênaltis. “As famílias e a
cultura são influências muito mais fortes do que as nossas. Precisaríamos de
20, 50 escolas como a Vivamazônia para pensar em uma pequena revolução
cultural. Mas acredito que, ao enriquecer cada casa, cada família, cada criança
com educação, estamos semeando essa revolução.”
Paul nas telas
A história da Vivamazônia
virou documentário em curta-metragem (abaixo), produzido pela Bossa Nova. O filme
foi lançado no dia 13 de agosto na abertura do show de Milton Nascimento no
teatro Amazônia, em Manaus. Paul e Bianca foram chamados ao palco e receberam
as devidas homenagens na voz do próprio artista.
Vai lá
Para visitar a
Vivamazônia, entre em contato com a Katerre. A agência organiza anualmente um
roteiro de barco entre Novo Airão e a Comunidade do Gaspar. A viagem coincide
com a soltura dos quelônios no rio e inclui interação das crianças locais com
os visitantes – é, portanto, ideal para viajantes de todas as idades. Os
pernoites são a bordo do Jacaré-Açu, embarcação de madeira extremamente
confortável e aconchegante, com oito cabines climatizadas, e todas as refeições
incluídas. www.katerre.com
Fonte/Fotos:
Revista Trip/Henrique Skujis
Nenhum comentário:
Postar um comentário