GRAÇA, ADEUS


- por Lúcio Flávio Pinto (*)

Graça Gonçalves pediu passagem antes do tempo, não esperou por seus amigos de infância, e de sempre, como eu, e se foi embora, ontem, em Santarém, aos 68 anos,
Foram-se com ela lembranças de um tempo em que formávamos uma grande família numa cidade com pouquíssimos carros (sem contar os de boi, que morcegávamos, para ira dos condutores), nenhum ônibus, longas caminhadas a pé por ruas cujos nomes eram dos seus moradores, não de homenageados oficiais, conversas preguiçosas de nunca querer acabar, brincadeiras de rua, o passeio até a praia,  na frente da cidade, de água clara e areia fina, o footing das férias, como se estivéssemos logo ali e não a mil quilômetros do litoral atlântico, o sorvete de fim de tarde na passarela do Mascote, estendida pelo Tapajós afora, a barra de chocolate (ou o Sonho de Valsa para a namorada), quando sobrava um dinheirinho, confidências e parcerias, os passeios às praias mais distantes, em “motores”, as festinhas domésticas e as do Centro Recreativo, um chalé europeu encastelado na ilharga da garapeira do Pequenino, com sua caderneta de maldades, renovada a cada nascimento, casamento ou morte, o cinema Olímpia do Raul Loureiro, com a conta corrente em aberto (para aflição do tio Dácio, supereconômico, dono de um vozeirão emprestado às mães impotentes para domar seus moleques, que temiam ante o estrondo da moral de aluguel), o bumba meu boi organizado pelos Gonçalves, numerosos, sob o comando do “seu” Washington, que torturava a molecada na poltrona de dentista, como o “seu” Arthur, a missa dominical na Matriz e tudo mais de uma Santarém, que, como Graça Gonçalves, continuará eterna em cada um de nós, até que não haja mais nenhum de nós para chorar o outro que partiu, como faço agora, no adeus à amiga.


(*) Lúcio Flávio Pinto é jornalista profissional desde 1966. Percorreu as redações de algumas das principais publicações da imprensa brasileira. Durante 18 anos foi repórter em O Estado de S. Paulo. Em 1988 deixou a grande imprensa. Dedicou-se ao Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que escreve sozinho desde 1987, baseada em Belém.

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