ARTIGO DEDOMINGO: ALTAMIRA: VIOLÊNCIA RECORDE
- por Lúcio Flávio Pinto (*)
As
grandes obras em áreas pioneiras sempre sugerem a imagem da omelete, que não
pode ser feito sem que se quebrem os ovos. Por provocaram mudanças súbitas e de
efeitos profundos, elas inevitavelmente acarretarão problemas. Eles só terão
menor significado se ações preventivas se consolidarem antes de começarem as
obras. No curso da execução, o acompanhamento constante é vital para que a
herança deixada pelo grande projeto não tenha continuidade ou mesmo se acentue.
Não
houve essa antecipação em Belo Monte, a segunda maior obra da história recente
da Amazônia, depois da ampliação de Carajás. A quebra de ovos foi
desproporcional à omelete, mesmo ela sendo gigantesca. Ao menos para quem,
morando em Altamira quando começou a construção da usina, em 2011, nela permanece.
Não
tendo sido incorporado aos benefícios da obra, o nativo padrão vê o seu modo de
vida destruído, agra que a usina entrou na fase de produção. O futuro não
chegou para ele. O passado virou miragem, fantasia, o leite derramado.
Pode-se
apontar a concessionária da hidrelétrica de 33 bilhões de reais, a Norte
Energia, atribuindo-lhe parte dos erros. Mas no aspecto específico da
segurança, a imprevidência e até a incúria é do poder público, como se pode
concluir de um artigo de pesquisadores da Universidade Federal do Pará, que
serviu de base para reportagem publicada hoje pelo portal de notícias Uol,
escrita por Carlos Madero.
Reproduzo-a,
com ligeiros ajustes, para estimular o debate sobre a questão.
Nos
anos 2000, em Altamira, cidade pacata no centro do Pará, havia paz às margens
do rio Xingu. A rotina de calmaria, porém, foi terminando ao mesmo tempo em que
era erguida a usina de Belo Monte.
Desde
o anúncio da obra, o município passou a viver uma explosão de violência que o
fez ingressar na lista das dez cidades com maiores taxas de homicídios do país.
Segundo
dados do Datasus, em 2015, o município registrou 135 homicídios –o que dá uma
média de 124 mortes por 100 mil habitantes. Para efeito de comparação, a taxa é
37% maior que Honduras, país com maior taxa de homicídios do mundo, segundo a
ONU (Organização das
Nações
Unidas). No Brasil, essa média não chega a um quarto disso: 29 por 100 mil.
Para
imaginar a mudança de vida, basta voltar ao ano de 2000, quando Altamira
registrou apenas oito homicídios e média de 9,1 mortes por 100 mil habitantes.
Em 2009 –quando a Eletrobras já solicitava a licença prévia de Belo Monte–, a
taxa já era de 50,6 mortes por 100 mil pessoas. Seis anos depois, essa média
saltou 147%.
“Os
resultados indicaram, a partir do início da construção da usina, um vigoroso
crescimento da violência, que atinge a população nos cinco municípios
diretamente afetados pelo projeto em dimensões proporcionalmente muito maiores
do que acontece em outras sub-regiões do Estado do Pará”, aponta o artigo “A
Hidrelétrica de Belo Monte e Seus Efeitos na Segurança Pública”, dos
pesquisadores João Francisco Garcia Reis e Jaime Luiz Cunha de Souza Professor,
da UFPA (Universidade Federal do Pará).
“Tais
municípios tiveram sua estrutura social, econômica e ambiental profundamente
alterada com a chegada das empreiteiras encarregadas da construção e a migração
de grandes contingentes de pessoas oriundas de todas as partes do Brasil”,
complementa.
Causas
e efeitos
Segundo
especialistas ouvidos pelo UOL, os números da violência estão ligados à chegada
das obras e recursos ao maior município em território do país (159 mil km², o
equivalente ao Estado do Ceará), somada à falta de investimentos públicos no
local.
“Altamira
tinha problemas de segurança, sim, mas não da forma gigante como chegou”,
afirma Antônia Melo, coordenadora do movimento Xingu Vivo para Sempre, que
congrega várias entidades da região.
Um
dos exemplos da violência foi o assassinato, em outubro de 2016, do então
secretário de Meio Ambiente e Turismo da cidade de Altamira, Luís Alberto
Araújo, 54.
Ele
era conhecido pela atuação rígida contra a exploração mineral e o desmatamento.
Após a morte, houve protesto na cidade, que cobrou apuração do caso –mas até
hoje o crime não foi elucidado.
‘Lá
não tem nada, é uma desgraça’
Segundo
Melo, a rotina da cidade hoje é de medo. “Todos aqui dizem que perderam a paz.
Hoje é assalto em todo canto, mortes. Virou um verdadeiro campo de guerra
civil, não só violência física, mas da ausência de direitos das pessoas”,
afirma.
Para
Melo, desde a chegada de Belo Monte, o desenvolvimento propagado pelo governo
trouxe consigo as drogas. “A juventude é a principal vítima disso. Em Altamira,
não há mais um espaço de lazer para jovens. Antes, tinha a beira do rio, que
não era poluído, para as pessoas tomarem banho. Pessoas foram transferidas de
suas margens aos novos assentamentos, e lá não tem nada. É uma desgraça, não
tem outra palavra”, explica.
O
professor de direitos humanos do curso de etnodesenvolvimento da UFPA, Assis
Oliveira, lembra que, além das mortes, o Relatório de Vulnerabilidade Juvenil à
Violência de 2015 apontou Altamira como o terceiro pior índice entre todos os
municípios do Brasil com mais de 100 mil habitantes.
“A
violência social, e não somente a de homicídio, aumentou drasticamente a partir
do ano de 2010, e isto se reflete em todos os outros índices que tenho apurado,
da violência sexual, dos conflitos familiares, da violência contra a mulher e
do tráfico de drogas”, afirma.
Oliveira
explica que essa alta é uma soma de duas equações: o grande aumento
populacional em curto período de tempo e a falta de uma preparação do
território e das políticas públicas para atender às novas demandas.
“Isso
tem no setor de segurança pública uma questão emblemática, pois ele não entra
como parte dos investimentos das condicionantes socioambientais. Somente em
2011, portanto já no processo agudo de aumento da violência, faz-se um Termo de
Cooperação entre a Norte Energia e o governo do Estado do Pará, para realizar o
investimento em algumas medidas estratégicas de segurança pública”, afirma.
Para
o professor, a violência na região também tem causas mais profundas, que vêm do
aumento da desigualdade socioeconômica causada pela obra.
“Esta
desigualdade socioeconômica só tende a crescer ao longo das etapas da obra,
pois é justamente agora, no período da chamada desmobilização dos trabalhadores
e vigência da Licença de Operação de Belo Monte, que ocorre uma redução
demográfica e um forte baque na economia local, com maior desemprego, trabalho
informal e precarização das condições de vida”, conclui.
Outro
lado
A
Norte Energia informou que o Projeto Básico Ambiental de Belo Monte não previa
investimentos para a segurança pública na área de influência da usina. Mesmo
assim, a empresa diz que firmou um convênio com o governo do Pará e investiu R$
110 milhões nos cinco municípios da área de influência direta.
No
caso de Altamira, a Norte Energia afirma que os recursos serviram para compra
com helicóptero, implantação de um sistema de videomonitoramento e reforma das
sedes das polícias Civil e Militar e do prédio do Instituto Médico Legal.
Em
nota, enviada após a publicação da reportagem, a Secretaria de Estado de
Segurança Pública e Defesa Social do Pará contestou “com veemência as
metodologias de pesquisas que utilizam como fonte de dados o Sistema de
Informações sobre Mortalidade (SIM), criado pelo Datasus”. Segundo a pasta,
foram 63 homicídios na cidade em 2015.
Para
chegar ao número de 135, em 2015, o UOL usou o dado de mortes por agressões
intencionais cometidas por terceiros. Os dados do Datasus são atualizados pelas
causas da morte contidas nas certidões de óbito. Por isso, o dado é internacionalmente
usado como parâmetro.
“O
ranking criado pela metodologia merece uma discussão, a fim de que sejam
respeitadas as diferentes formas de captação de dados dos Estados brasileiros,
a exemplo do Pará, que coleta informações referente à criminalidade a partir de
boletins de ocorrência. A necessidade de discussão é tão necessária que, em
outubro de 2015, o governo baiano questionou, oficialmente, o Ministério da
Justiça por conta do uso da metodologia SIM, empregada pelo Senasp no trabalho
Diagnóstico dos Homicídios do Brasil daquele ano”, diz o comunicado.
A
secretaria ainda diz que ações de prevenção e combate à criminalidade na
região, no segundo semestre de 2016, reduziram os índices de homicídios,
latrocínios e roubos a residências. “Foram apreendidas quase 150 armas de fogo,
efetuadas 28 prisões e cumpridos 39 mandados de prisão. Em 2016, a Polícia
Civil prendeu todos os envolvidos no assassinato de um casal e um filho da
família Buchinger, crime de grande repercussão na cidade de Altamira.”
(*) Lúcio Flávio Pinto
é jornalista profissional desde 1966. Percorreu as redações de algumas das
principais publicações da imprensa brasileira. Durante 18 anos foi repórter em
O Estado de S. Paulo. Em 1988 deixou a grande imprensa. Dedicou-se ao Jornal
Pessoal, newsletter quinzenal que escreve sozinho desde 1987, baseada em Belém.
No
jornalismo, recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, da Federação Nacional dos
Jornalistas. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças
sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace e, em
2005, o prêmio anual do CPJ (Comittee for Jornalists Protection), de Nova York.
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