A HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA E MORTE DOS POVOS INDÍGENAS NA DITADURA MILITAR
‘Os fuzis e as flechas’, de Rubens Valente, reconstrói embates a
partir de documentos inéditos
O
marechal Rondon cunhou uma frase que se tornou o lema de gerações de
sertanistas brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
criado em 1910: “Morrer se preciso for, matar nunca”. A declaração ecoou até os
anos 1960 e 1970. Contudo, apesar do desejo declarado de proteger os indígenas,
o resultado da ação do Estado brasileiro não raro foi o massacre de tribos
inteiras. Essa é a história que o jornalista Rubens Valente conta em “Os fuzis
e as flechas: a história de sangue e resistência indígena na ditadura”
(Companhia das Letras). A partir de uma vasta pesquisa nos arquivos oficiais
abertos a partir de 2008 e entrevistas com índios e ex-funcionários do SPI e de
sua sucedânea criada em 1967, a Fundação Nacional do Índio (Funai), Valente
constrói um painel de violência, morte e luta desses povos.
O
enredo da história se repetiu. Índios entravam em conflito com seringueiros,
posseiros ou militares que construíam obras faraônicas no meio da selva.
Funcionários do SPI, e depois da Funai, eram chamados para resolver o problema,
“amansando” os indígenas, aponta o jornalista. Várias vezes, os contatos com
homens brancos provocavam epidemias de doenças como gripe e sarampo. Sem
remédios nem estrutura para ajudar, os funcionários que deviam protegê-los
assistiam a tribos inteiras morrerem. Valente aponta, entretanto, uma
ambiguidade na atuação dos sertanistas e do próprio Estado brasileiro.
À
beira da rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163), índios krain-a-kore pedem comida e
carona para cidade. A construção de rodovias ligando as regiões Centro-Oeste e
Norte do país fizeram parte da política de desenvolvimento dos governos
militares - Orlando Brito/03-03-1974
—
Havia um projeto de desenvolvimento sendo colocado em prática que passava por
cima dos direitos indígenas, principalmente o direito de eles saberem o que
estava acontecendo. Muitos servidores se viram nesse papel de buscar uma
negociação entre o Estado e os grupos étnicos ao mesmo tempo em que já sabiam
que a decisão já estava tomada — afirma. — Com o passar do tempo, os próprios agentes
fazem o balanço crítico do que foi feito. Eles trazem um lamento que senti nas
entrevistas.
Um
caso ilustrativo da maneira como a questão indígena foi tratada durante a
ditadura ocorreu na construção da BR-174, entre Manaus e a fronteira com a
Venezuela, em Roraima. A rodovia cortava o território dos waimiri-atroari.
Desde o final do século XIX, os índios dessa região viviam em conflito com os
ditos “civilizados”. Em junho de 1968, alguns apareceram próximo aos canteiros
de obras. Com os operários alarmados, o diretor do Departamento de Estradas de
Rodagem (DER) de Manaus, coronel Manoel Carijó, pediu ajuda à Funai.
Índios
Waimiri-Atroari perto de uma de suas malocas no estado do Amazonas, em registro
feito na década de 1970 - Jorge Peter/14-01-1977
A
primeira tentativa de contato com os waimiri-atroari, comandada por um padre
italiano, terminou com nove membros da equipe mortos. Quatro anos depois, no
governo Médici, a Funai abriu três postos de atração, sob a chefia do
sertanista Gilberto Pinto Figueiredo. A situação era tensa. Os índios viam
máquinas destruírem a floresta e as obras atraindo novos moradores. Valente
narra as dificuldades de comunicação, encontros e desencontros entre brancos e
índios, tensão permanente com empreiteiros e servidores. Mais de uma dezena de
funcionários morreram em quatro chacinas entre 1973 e 1974. O Exército
respondeu à bala.
—
Os waimiri-atroari simbolizam o período. É uma obra que sofre resistência
violenta e provoca uma reação militar muito clara. Pela primeira vez, três
militares reconheceram que houve mortes de índios em confrontos. Isso nunca
tinha sido admitido. Mas eu lamento a confissão de um coronel de que todos os
documentos sobre essa obra terem sido incinerados. Ainda precisamos descobrir
muita coisa sobre o que aconteceu — diz o autor.
Caciques
se reúnem com os irmãos Villas-Bôas, no Parque Nacional do Xingu, para
denunciar invasão de suas terras em 1974 - Marcio Arruda/14-11-1974
Ele
vê uma ação deliberada dos militares para abafar todos os casos relativos aos
indígenas durante a ditadura. E avalia que os generais sabiam que viria uma
enorme pressão internacional se as milhares de mortes viessem à tona. Isso
também contribuiu para o silenciamento dessas violências.
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—
Isso traz uma dificuldade para reconstituir a história, que ocorreu em locais
ermos e distantes. Essa é uma pesquisa que necessita de muitos recursos, as
testemunhas estão espalhadas por diferentes aldeias e cidades. O Estado
brasileiro também precisa reconhecer seus crimes e seus erros — afirma Valente,
que começou a trabalhar no livro em 2013, mas escreve sobre o tema desde 1989.
O
cacique guarani Marçal de Sousa denuncia ao Papa João Paulo II os assassinatos
cometidos contra o seu povo no Mato Grosso do Sul, durante visita do pontíficie
ao Brasil - Luiz Pinto/10-07-1980
O
autor aponta que discursos do passado voltaram com força hoje em uma ofensiva
contra os direitos indígenas, que é, na verdade, uma disputa pela terra.
—
Se os índios habitassem o céu não gerariam tantas críticas. A crítica vem
porque eles ocupam um pedaço de terra, que é cobiçado. É uma guerra econômica
envolta em preconceito e intolerância. São os mesmos fantasmas que nos
atormentam. A elite econômica e política brasileira, infelizmente, não
conseguiu entender que o índio deve ficar onde está, que eles trazem uma
riqueza cultural imemorial. A convivência seria uma lição de tolerância do
Brasil para o mundo.
Fonte/Foto: Leonardo Cazes, em globo.com/Arquivo
O Globo

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