ARTIGO DEDOMINGO: O BRASIL NO HOSPITAL



- por Lúcio Flávio Pinto (*)

Casando com Lula quando ele ainda era apenas (mas não “apenas”, para as circunstâncias da época, de uma ditadura de base militar), Maria Letícia assumiu o papel de chefe da família. Decisão sábia. Homem público com atividade intensa, Lula foi o político que por mais tempo (14 anos) perseguiu a presidência da república e um dos dois únicos a nela permanecer por oito anos, aproveitando-se do instituto da reeleição, aprovado durante o mandato do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.
Nessa condição, teria inevitavelmente que ser um ausente no lar. Sua mulher, a segunda, com quem conviveu maritalmente por 43 anos, cuidou da casa, dos filhos e da família toda. Renunciou à vida relativamente autônoma que tinha para ser aquilo que nos cadastrados desatualizados se define por doméstica.
Na morte, porém, exerceu uma salutar função política. Num momento de enorme tensão e incerteza para o país, ela forçou uma paralisação – ao menos parcial – do ambiente carregado de radicalismos e intolerâncias para que os antagonistas se exibissem e convivessem nas manifestações de apoio e solidariedade ao marido.
Como era de se prever (e lamentar), petistas acantonados em frente ao hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde Marisa Letícia transitava da vida vegetativa para a morte, vaiaram e ofenderam os desafetos, em especial o presidente Michel Temer, mimoseado com o grito de guerra de golpista, traidor e outras gentilezas do gênero.
Escoimado o que não passa de oportunismo e fanatismo, o desfile de políticos e equivalentes pelo hospital revela, a quem possui olhos de ver, que esquerda e direita deixaram de se distinguir e, conceitualmente, não têm mais valor heurístico.
Políticos de esquerda e de direita, à parte seus discursos e retóricas em geral, praticaram sem distinção tropelias, desatinos, avanços sobre o erário, violações éticas e morais, contradições ideológicas, desnaturando os programas que alegam defender.
A começar pelos dois principais personagens desse momento fúnebre, os ex-presidentes Fernando Henrique e Lula. Social-democrata, FHC se atribuiu a missão de esvaziar o estatismo de Getúlio Vargas, oxigenando o capitalismo brasileiro. Chegou, porém, a um paroxismo que esvaiu o
controle do Estado sobre a atividade econômica. O cidadão ficou mais à mercê de monopólios e cartéis.
Já Lula, para tentar uma combinação dos 50 anos em 5 de JK e o Estado como financiador da atividade privada, delegou todos os mecanismos financeiros ao banqueiro Henrique Meirelles, posto na mesma função por Temer. Ambos querem ter dinheiro para gastar. Lula gastou além das medidas suportáveis ou controláveis por Dilma.
Só quem ficou na porta do hospital sem um olhar crítico, já faccioso ou tendencioso, não viu que, em matéria de liderança, o Brasil se nivelou por baixo. Talvez, também, em matéria de liderado, também.


(*) Lúcio Flávio Pinto é jornalista profissional desde 1966. Percorreu as redações de algumas das principais publicações da imprensa brasileira. Durante 18 anos foi repórter em O Estado de S. Paulo. Em 1988 deixou a grande imprensa. Dedicou-se ao Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que escreve sozinho desde 1987, baseada em Belém.
No jornalismo, recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, da Federação Nacional dos Jornalistas. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace e, em 2005, o prêmio anual do CPJ (Comittee for Jornalists Protection), de Nova York.

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