ARTIGO DEDOMINGO: AMAZÔNIA COLÔNIA
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por Lúcio Flávio Pinto (*)
Os
militares se embeveciam quando comparavam a conquista da Amazônia, que eles
promoviam com intensidade desde 1966, com a corrida especial entre americanos e
russos. Quando os primeiros cosmonautas contornaram a Terra, dizia-se que lá do
alto, de uma distância inimaginável até pouco tempo, eles só conseguiam
contemplar duas obras humanas: a muralha da China e a Transamazônica.
A
estrada, com mais de dois mil quilômetros de extensão na sua primeira fase, era
como um novo abrir do mar Vermelho da mitologia bíblica. Rasgando uma linha de
terra batida no meio de uma floresta fechada e até então não penetrada pelo
homem, que não se aventurava muito além dos cursos d’água, milhares e milhares
de brasileiros desfavorecidos pela sorte, teriam acesso, finalmente, ao sonhado
pedaço de terra.
Em
um lote de mil por mil metros, ele ingressaria na até então inatingível classe
média rural. A Amazônia era o Éden, a Terra Prometida, a Bandeira Verde do
imaginário do nordestino, o principal dos imigrantes.
Em
1975, porém, a colonização oficial dirigida pelo governo federal, que
aproximaria os homens sem terra da região mais pobre do país à terra sem homens
da sua maior fronteira, seria substituída por uma nova diretriz. A Amazônia,
ocupando dois terços do território brasileiro, podia abrigar quantos parta ela
se deslocassem – não mais, porém, com subsídio estatal. O que Brasília queria
era fazer da Amazônia uma usina de dólares.
Seus
recursos naturais teriam que se converter em dólares, com os quais o regime
militar, finalmente, tornaria realidade seu projeto geopolítico do Brasil
Grande, salvaguardado pela doutrina de segurança nacional contra estrangeiros
ameaçadores e, sobretudo, maus brasileiros – os críticos, os subversivos, os
terroristas.
O
“modelo de ocupação” foi definido de forma bem clara no II PDA, um plano de
desenvolvimento quinquenal, executado com rigor e conforme a letra do texto, um
documento colonialista sem qualquer veleidade de pudor e tergiversação. Era um
enunciado tão categórico que continua a ser seguido até hoje, 31 anos depois do
fim da ditadura, sob sete presidentes da república democraticamente eleitos, de
diversas tendências políticas e ideológicas.
Aquele
que era o inimigo do regime ditatorial, o líder operário Luiz Inácio Lula da
Silva, do Partido dos Trabalhadores, foi o que mais enalteceu o rigor e
eficiência do planejamento tecnocrático dos militares – e o que mais fielmente
o seguiu. Secundado por sua sucessora, Dilma Rousseff.
Eles
se empenharam em realizar obras semelhantes às apoiadas pelos militares, como
as hidrelétricas de Jirau, Santo Antônio e Belo Monte, que, juntas, representam
investimento de mais de 60 bilhões de reais, passando por cima de críticos e
oponentes com uma determinação que deixaria admirado o principal dos
formuladores da estratégia dos militares, o general Ernesto Geisel, citado
pessoalmente por Lula com certa reverência.
De
fato, desde 1975, as exportações da Amazônia se multiplicaram 15 vezes. O Pará
se tornou o sétimo maior exportador do Brasil (já foi o 5º, caindo por causa da
brutal queda do principal produto de exportação do país, o minério de ferro, do
qual é o vice-líder, abaixo apenas de Minas Gerais) e o terceiro que mais
fornece divisas (diferença entre o valor do que exporta e do que importa).
São
produtos de baixo valor agregado: matérias primas, commodities. Os mais
intensivos, porém, em energia, como alumínio, alumina, minério e a própria
energia bruta. O II PDA impôs à Amazônia dupla penalidade: o efeito
multiplicador dos produtos que exporta vai ocorrer no país que os importa; além
disso, a receita tributária é baixa, impedindo a melhor distribuição dos
efeitos econômicos da exploração dos seus vastos recursos naturais.
Em
1996, um golpe profundo foi dado pelo deputado federal (de São Paulo) Antonio
Kandir, que integrara como ministro o governo Collor e se bandeara para o PSDB.
Ele propôs e conseguiu transformar em lei a isenção completa do principal
imposto para Estados e municípios, o ICMS das exportações de matérias primas e
produtos semi-elaborados. Por acaso, no ano seguinte o governo Fernando
Henrique Cardoso privatizaria a antiga Companhia Vale do Rio Doce, a principal
beneficiada pela lei Kandir.
Estados
e municípios perderam desde então bilhões de reais. A compensação prevista pela
lei nunca foi completa. O pior é que a lei sequer foi regulamentada. No final
do mês passado, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal mandou o Congresso
Nacional cumprir uma omissão de quase 13 anos.
O
descaso do legislativo era – e continua a ser – com a determinação
constitucional de editar lei “fixando critérios, prazos e condições nas quais
se dará a compensação aos Estados e ao Distrito Federal da isenção de ICMS
sobre as exportações de produtos primários e semi-elaborados”.
Para
obrigar o Congresso a assumir sua responsabilidade, o governo do Pará ajuizou
no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, que teve a adesão
de mais 15 dos 27 Estados da Federação. Por 11 votos a zero, o plenário do
Supremo julgou procedente a ação, acolhendo o voto vencedor do relator, Gilmar
Mendes.
A
corte fixou prazo de 12 meses para que o Congresso editar lei complementar
regulamentando os repasses de recursos da União para os Estados e o Distrito
federal em decorrência da desoneração das exportações do ICMS.
Até
para lhe diminuir o prejuízo, a Amazônia é tratada pelo poder central como é de
verdade, retóricas à parte: uma colônia.
(*)
Lúcio Flávio Pinto é jornalista
profissional desde 1966. Percorreu as redações de algumas das principais
publicações da imprensa brasileira. Durante 18 anos foi repórter em O Estado de
S. Paulo. Em 1988 deixou a grande imprensa. Dedicou-se ao Jornal Pessoal,
newsletter quinzenal que escreve sozinho desde 1987, baseada em Belém.


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