SEITA RESSURGE EM MAIS DE 170 ALDEIAS DA AMAZÔNIA
Nova igreja em obras, frequentada por indígenas de comunidade. |
Ordem católico-messiânica prolifera entre comunidades
indígenas do Alto Solimões
A marca é invariavelmente
uma cruz vermelha, com 14 metros de altura, plantada no ponto mais alto da
comunidade. As iniciais RDSM (Recordação da Santa Missão) também são
obrigatórias, bem como a data de fundação de cada irmandade, gravada em números
brancos.
O dízimo é lei: 10% de
toda a renda vai para a igreja. Quem não tiver, contribui com bens domésticos
--um rádio, um animal de estimação, o que for-- sempre na proporção de 10% de
tudo o que houver na casa. Quem ainda assim não tiver o que dar, dá seu próprio
trabalho.
Perdida nos cafundós da
Amazônia, a Missão da Ordem Cruzada, Católica, Apostólica e Evangélica --ou
simplesmente Irmandade da Santa Cruz-- cresce a passos largos entre as
comunidades indígenas do Alto Solimões, especialmente nas etnias ticuna e
cocama.
A congregação segue o
rastro do rio Solimões e se espalha em mais de cem pequenas aldeias entre os
500 quilômetros que separam Tabatinga de Tefé.
Nas casas simples das comunidades ribeirinhas, vestes brancas e imagens do fundador |
Na região de Tabatinga, na
fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, já existem 49 comunidades ostentando a
cruz vermelha no ponto mais alto da vila. No Amazonas, único Estado do Brasil
onde a seita tem seguidores, a Santa Cruz está presente em 109 aldeamentos.
Do outro lado da
fronteira, nas comunidades indígenas do Peru, a seita já colheu adeptos em 52
comunidades, incluindo a reserva do Javari --uma das mais isoladas da Amazônia.
Na capital, Lima, a
primeira igreja foi aberta há dois anos. Nos anos de 1980, até então auge da
congregação, a seita estava presente em pouco mais de 40 aldeias.
A expansão acaba de chegar
à Argentina: em janeiro, foi estabelecida a primeira missão em Buenos Aires.
Fundada pelo pregador José
Francisco da Cruz em 1972, a igreja quase se extinguiu após a morte de seu
líder espiritual. O retorno é consistente: na região amazônica há mais de 170
comunidades que voltaram a seguir seus dogmas, que incluem restrições severas a
festas e a bebidas alcoólicas e aos direitos femininos.
"A gente pode se
pintar, mas bem pouquinho. Quando está nos dias [menstruada], não nos deixam
entrar na igreja ", descreve a indígena cocama Tirça Penedo Felipe, 32,
moradora da comunidade de Mato Grosso, às margens do Solimões.
A ticuna Elisabeth Perez
de Souza, 52, viu a igreja florescer na sua aldeia, a vila do Bom Caminho,
quando ainda era uma adolescente. Hoje não frequenta mais os cultos, embora
diga não ter "nada contra" a Santa Cruz. E, mesmo sem ser congregada,
faz doações regulares, de dinheiro e de bens.
"Na época em que
chegaram aqui, mulher não podia falar com homem. Se falasse, tinha que ficar de
joelhos toda a madrugada. Isso não existe mais, mas as congregadas ainda não
podem usar calças compridas e nem deixar os cabelos soltos", relata.
Trabalho voluntário
A igreja da comunidade do
Mato Grosso, na margem direita do Solimões, ainda está em obras, apesar de a
missão ter plantado a cruz por ali em setembro de 1997. As divisões pelo
controle da seita, que se radicalizaram a partir de 1999, quase acabaram com os
fiéis.
Desde então, os 142
moradores da vila se dividem entre a Santa Cruz e a igreja católica, cujo
templo mais próximo fica a quase duas horas de barco, na cidade de Benjamin
Constant. A predominância é de fiéis da congregação.
Tirça e a família dão
todos os meses entre R$ 10 e R$ 20 para a igreja --uma enormidade para a
pobreza da região. Quando não têm dinheiro, ela e o marido trabalham às
sextas-feiras, das 7h às 14h, na construção ou na limpeza do templo --uma
estrutura muito simples, apenas com um altar para os cultos e espaço para a
assistência em bancos de madeira.
Os cultos começam às 4h30
nos dias de semana e podem se estender até por volta das 7h. Aos domingos o
início é às 7h30, mas a leitura do Velho Testamento --outra regra que não pode
ser quebrada-- pode perdurar até as 11h. À tarde a rotina é semelhante.
"Ajuda muito. Todo
mundo se adestra e sai da oração preparado para o trabalho ou para o estudo. A
mente fica pronta para receber a palavra de Deus", diz o indígena
Richardson Garcia Sevalhos, 30, em defesa dos rigores da seita.
Sevalhos, morador de Mato
Grosso, também defende a restrição ao álcool determinada pela igreja, embora a
comunidade ainda misture cachaça à casca de copaíba para fazer xaropes e
anti-inflamatórios.
Segundo ele, depois que a
Santa Cruz voltou a ter adeptos "não tem mais bebedeira e nem drogas"
entre os índios.
O ribeirinho Floriano
Pinto de Souza, 78, que fundou a igreja junto com a comunidade de Bom Caminho
há 38 anos, encontrou na seita uma resposta para a morte de quase toda a
família.
Devido às más condições
sanitárias das aldeias no Alto Solimões, restaram apenas Floriano e o pai.
A Santa Cruz serviu como
estímulo para voltar a trabalhar. Entre as 94 famílias do local, a seita
contabiliza 90 fiéis – dos quais 36 são crianças. Há dois anos eram apenas 20.
Uma vez por mês, a cada
dia 30, é feita uma procissão para adorar a pequena cruz vermelha, miniatura do
símbolo principal. Todos os fiéis têm que ir aos cultos de branco.
"Quando fomos jogados
na beira do rio, eu disse ao papai que ia plantar uma cruz para adorarmos.
Então viemos para cá. Tem que fazer penitência para poder ter salvação e
crescer alguma coisa para a comunidade. Sem Deus não podemos fazer nada. Só
Deus é que dá alguma coisa. Por isso a gente sai de madrugada para fazer
pregação" conta.
Floriano, que é capitão na
hierarquia da Ordem, diz que "tem o direito" de pagar R$ 20 todo mês
para a igreja. O dinheiro do dízimo é encaminhado para a sede comercial da
congregação em Santo Antônio do Içá e, dali, para um escritório de
contabilidade em Tabatinga --a cerca de quatro dias de barco.
O atual presidente da
Ordem, Dalmácio Pinheiro de Castro, vive isolado na comunidade do Juí, a sete
dias de barco de Tabatinga, e não foi localizado pela reportagem.
"Ele [pastor
Dalmácio] vem aqui uma ou duas vezes por ano fazer a contabilidade da igreja. É
o único que tem autorização para mexer com o dinheiro da congregação",
narra o auxiliar Einer Batista, funcionário da empresa.
As ofertas espontâneas que
os fiéis fazem aos domingos --peixes, animais silvestres, utensílios domésticos
e dinheiro-- são direcionadas à tesouraria da igreja na própria comunidade.
Ali, abastecem as obras e
servem para custear as missões de evangelização por outras aldeias.
Fonte/Fotos:
noticias.uol.com.br/Cacalos Garrastazu - Eder Content
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