GRAVE: SEM CUMPRIR CONDICIONANTES, BELO MONTE PROVOCA CAOS NA SAÚDE INDÍGENA NO XINGU
Falta de água potável, insegurança alimentar,
alcoolismo e depressão, são investigados
As obras e ações previstas
em 2010 como condições necessárias para a implantação da usina hidrelétrica de
Belo Monte, no Pará, começaram a ser implantadas apenas recentemente, em 2015,
quando a obra já solicitou até licença para iniciar a operação. Autoridades
públicas responsáveis pelo atendimento de saúde aos povos indígenas afetados
pela usina confirmaram unanimemente a informação nesta terça-feira, 18 de agosto,
em audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) em
Altamira.
“As dificuldades que
estamos enfrentando no atendimento da saúde estavam previstas no EIA [Estudo de
Impacto Ambiental]. A gente apresentou a reestruturação das ações de saúde para
que a gente pudesse atender o nosso compromisso com a saúde indígena. A gente
sabe que muita coisa do PBA [Plano Básico Ambiental] que era pra ter iniciado
há mais de quatro anos e agora que está começando. Agora que está começando a
construção das UBS [Unidades Básicas de Saúde], dos sistemas de abastecimento
de água, agora que a gente tá discutindo como vai ser o novo modelo de
atenção”, disse o coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) de
Altamira, Lindomar Carneiro. O Dsei atende todos os povos atingidos por Belo
Monte.
“O PBA de fato está se
iniciando agora. O primeiro programa que existe no PBA é a reestruturação do
Dsei e seguem-se alguns eventos para a organização dos serviços de saúde. Essa
primeira etapa de reestruturação está acontecendo agora. Depois disso a gente
vai ter que reorganizar o distrito. Essa ação era para ter acontecido lá atrás,
na época da instalação dos canteiros”, confirmou Roberta Aguiar, da Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde que coordena o
atendimento diferenciado aos indígenas em todo o país.
A inação quase total da
Norte Energia SA e do governo brasileiro, responsáveis pela obra, no
cumprimento das condicionantes indígenas nesses cinco anos desde a concessão da
Licença Prévia de Belo Monte, transformou a vida dos mais de 3 mil indígenas
afetados de maneira provavelmente definitiva. Na audiência pública,
representantes de todas as etnias relataram crianças morrendo de diarreia por
falta de água potável, doenças crônicas causadas pela substituição da
alimentação tradicional por comida industrializada, alcoolismo, depressão.
“Eu visitei a [Terra
Indígena] Trincheira-Bacajá e presenciei a morte de duas crianças indígenas. Eu
fui aos Araweté e tinha acabado de morrer uma criança, todos de diarreia.
Visitei aldeias infestadas de baratas. Visitei aldeias onde casas eram
construídas sem nenhum cuidado e não servem para nada. Indígenas vieram até o
MPF relatar que a água do rio está suja”, disse a procuradora da República
Thais Santi, que convocou a audiência. “A nossa saúde está intrinsecamente
interligada com a terra. Não dá para falar que a nossa saúde está boa se as
nossas terras não estão seguras, se a proteção territorial não foi feita, se a
demarcação não saiu, se a desintrusão não foi assegurada. Precisamos das nossas
terras protegidas, demarcadas e desintrusadas. Está acontecendo o contrário.
Nossas terras estão cada vez mais desprotegidas, pressionadas”, acrescentou
Uwira Xakriabá, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi).
O descumprimento
sistemático das condicionantes indígenas desde o início da obra de Belo Monte
provocou uma situação em que os impactos previstos não foram evitados – pelo
contrário, atingiram em cheio os índios – e a falta de clareza sobre as
responsabilidades do poder público e do empreendedor acabou criando novos
impactos. Somando tudo, a situação é caótica. “Isso causou uma insegurança que
provoca danos psicológicos, conflitos entre lideranças, alcoolismo, depressão”,
afirma Uwira. Os conflitos foram separando as populações, antes divididas em 18
aldeias, hoje separadas em 42, o que contribuiu para piorar o pesadelo
logístico em que se transformou o atendimento à saúde na região.
Contrariando as
informações trazidas ao MPF por indígenas, pesquisadores e autoridades que
aplicam a política indigenista, a Norte Energia divulgou nota no dia da
audiência afirmando que “os povos indígenas do Médio Xingu têm a devida atenção
básica em saúde”. O professor Assis de Oliveira, coordenador do curso de
Etnodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará, que vem monitorando em
pesquisas acadêmicas os problemas trazidos por Belo Monte, criticou a nota.
“Fica muito complicado quando o empreendedor não reconhece seus erros e não
reconhece o que foi efetivamente implementado. Tudo o que foi feito dentro do
plano emergencial contraria o que se considera como etnodesenvolvimento. O que
foi feito desmantelou a proteção territorial e fragilizou os povos. Isso é algo
muito preocupante, precisa ser investigado a fundo”, disse.
As populações Arara,
Juruna, Xipaya e Kuruaya da Volta Grande do Xingu, área mais afetada, estão sem
água para beber, cozinhar e tomar banho porque as últimas intervenções no rio
deixaram as águas turvas e inservíveis e apenas metade dos sistemas de
abastecimento de água nas aldeias estão prontos. “O povo Arara da Volta Grande
não tem poço nem água tratada e praticamente nesses dias eles têm bebido lama.
Não tem como pegar água em outro lugar, é muito longe. As crianças estão adoecendo.
A minha neta vive doente, porque ela bebe aquela água que não é saudável. Se a
gente desse para as pessoas da Norte Energia que vão nas reuniões na aldeia,
não iam querer beber aquela água”, relatou Aldenira Juruna, da aldeia
Paquiçamba, representante da etnia no Conselho Distrital.
Obrigados a uma sucessão
de reuniões e negociações sobre problemas causados pela usina, sobre as
condicionantes nunca cumpridas, sobre as listas de compras de mercadorias, se
deslocando com frequência para a cidade de Altamira, muitos indígenas
abandonaram as roças e a Fundação Nacional do Índio (Funai) chegou a solicitar
fornecimento de cestas básicas para comunidades antes autossuficientes. A Funai
considera que as ações antecipatórias previstas, nunca feitas, geraram um
efeito cascata em que todos os impactos previstos se confirmaram, surgiram
impactos nunca previstos e impactos que não ocorreriam não fossem as ações
feitas de maneira incorreta e atrasada.
Em substituição ao
programa antecipatório de etnodesenvolvimento que deveria ser implantado desde
o começo da obra, a Norte Energia implantou entre 2011 e 2012 um plano
emergencial que consistia na compra de mercadorias para as aldeias. A
desagregação social e cultural foi o resultado visível da política. Com acesso a
bens de consumo, mas alijados dos direitos garantidos na Constituição e no
licenciamento ambiental de Belo Monte, a situação se agravou muito. Agora que
foi encerrada a política irregular de entregar mercadorias às aldeias, os
índios apontam para o cumprimento das ações do Plano Básico Ambiental como
única chance de sobrevivência, já que os danos culturais e sociais são
irreversíveis. Durante a audiência, todos os indígenas que se manifestaram
falaram da insegurança quanto à implementação do PBA, tendo em vista que as
ações previstas simplesmente não vêm sendo cumpridas e outras, como a proteção
dos territórios, a Norte Energia se nega abertamente a cumprir.
Para o MPF, além de ser
indispensável a efetiva implementação das ações do PBA-CI, tal como foi aprovado
pela Funai, como um Programa Médio Xingu, os inúmeros impactos não previstos,
decorrentes das obrigações não cumpridas e das ações realizadas à margem do
licenciamento impõem a previsão de novas ações mitigatórias aptas a tornar a
obra de Belo Monte suportável aos povos indígenas. “Não existe justificativa.
Ninguém veio aqui para tentar explicar porque as coisas aconteceram dessa forma
aos povos da região. O que é preciso dizer, ao governo federal, é que, se a
escolha governamental é usar o rio Xingu para gerar energia, isso tem que ser
feito dentro da lei. Uma vez feita a escolha, não é dado ao Estado ou ao
empreendedor se colocar acima da lei. Não existe possibilidade de uma licença
de operação para Belo Monte sem haver uma readequação do processo”, concluiu
Thais Santi.
Presente no local da
audiência pública, o representante da Secretaria Geral da Presidência da
República João Lizardo Paixão, disse que estava “à disposição para dialogar”.
Fonte: MPF
Nenhum comentário:
Postar um comentário