CONTO: “DEPOIMENTO DO CRIOULO DEFORMADO”, DE ROBERTO DE FARO
- por Roberto de Faro (*)
O caminhão encostou ao
lado do tapume e imediatamente começaram a descarregar os tijolos. Eram
milhares e na descarga muitos se quebraram.
É que o motorista
apressava demais os ajudantes, pois estavam fazendo o serviço em hora não
autorizada e havia receio de aparecer um guarda de trânsito e criar problemas
com o caminhão, com a carga e com o condutor.
E o pior é que o
engenheiro praticamente obrigara o motorista a fazer aquela entrega urgente,
fora de hora e sem dar nenhum trocado para dobrar o guarda se ele aparecesse
durante a descarga. Daí a pressa.
Eram tijolos especiais,
escolhidos, pois deveriam ser colocados na cobertura do prédio mais alto e mais
sofisticado que a construtora estava levantando na cidade e não poupava
propaganda para exaltar as excelências do edifício de luxo.
A qualidade do material
empregado não podia ser descuidada em hipótese alguma. Até os tijolos passavam
por uma seleção rigorosa.
Desde o momento da
encomenda na olaria as recomendações eram claras, precisas e rigorosas. Os
tijolos deveriam ser uniformes no tamanho, peso e cor. Não podiam ter nenhum
defeito. Então foi aquele deus-nos-acuda durante todo o processo de fabricação.
Os operários comentavam em
voz alta uns com os outros o privilégio, a distinção com que a olaria que
trabalhavam fora eleita entre tantas outras para fornecer o material àquela
badalada construtora.
De tanto ouvirem as
recomendações, as exigências, os tijolos daquela fornada começaram a se sentir
vaidosos. Afinal não eram tijolos comuns, como tantos outros que já saíram
daquele forno. Eram perfeitos e mais caros.
E sem perceberem começaram
a sentir a sensação de orgulho, de vaidade e, pior, de rivalidade, o que,
enquanto argila e ignorantes de sua utilização, desconheciam.
Agora, o simples contato
entre eles, empilhados e prontos para embarque já os deixavam agastados.
“Cuidado, você está me riscando!”. “Não estou riscando coisa nenhuma, você é
que está me amassando!”.
E assim, todos se achavam
com direito de reclamar dos companheiros. No entanto, tinha um que não dizia
palavra. Nenhum queixume. Aguentava a rabugice e amolação dos outros
absolutamente calado e resignado.
Quieto, muito quieto para
não chamar a atenção dos companheiros. Ele também queria fazer parte daquele
magnífico edifício que tanto se comentava na olaria. E, por um imperdoável
descuido do funcionário encarregado do controle de qualidade e para sorte sua,
foi parar no meio dos selecionados.
Ele sabia que se não fosse
aquele bendito descuido provocado pelo cansaço do empregado, jamais pertenceria
à legião dos eleitos, pois apresentava um defeito grosseiro e visível.
Um dos seus lados havia
queimado mais do que os outros e ainda uma de suas quinas, que na hora do exame
estava para o lado de baixo, encontrava-se amassada, deformada.
Quando chegou à pilha dos
escolhidos percebeu que não era bem-vindo. Houve um princípio de motim entre os
perfeitos. Bem que quiseram denunciar a afronta. “Como é que pode um crioulo
deformado vir se meter entre nós? Devia ter sido quebrado como fizeram com os
outros”.
“É isso mesmo. Ainda há
tempo, vamos denunciá-lo. Entre nós é que não vai ficar!” E foi então aquela
algazarra: “Fora! Fora! Fora!” Sorte que ouvidos humanos não perceberam tamanho
clamor.
Para acalmar o tumulto da
tijolaria, surgiu, debaixo de todos, a voz de um pacificador: “Calma, pessoal.
Escutem! Ainda não embarcamos, quem sabe na hora de sermos transportados para o
caminhão não deem com ele e então o apartam de nós. Até lá, tenham calma e
sosseguem, porque vocês estão me amassando demais!” Foi essa providencial
interferência que acalmou o ânimo exaltado da tijolada até o dia seguinte.
E outra vez o acaso
beneficiou o “crioulo deformado”. O engenheiro da construtora telefonou para o
dono da olaria avisando que um caminhão estava indo para lá e que o
carregamento deveria ser imediato.
Dessa forma, não houve
tempo suficiente para a derradeira seleção e lá foi o tijolo crioulo no meio
dos outros para a obra, aonde chegou são e salvo e com mais sorte que vários
colegas seus que, mal arrumados, na pressa do embarque, acabaram se quebrando
na viagem.
Só foi notada a sua presença
quando desembarcou do elevador de carga no último andar. Aí já era um pouco
tarde. O servente ainda alertou o mestre-de-obras:
– Chefe, aqui tem um que
não combina!
– Não combina com quê? –
perguntou o mestre.
– Ora, não combina com os
outros tijolos. Este aqui tá queimado e amassado na ponta.
– Deixa ele por aí. Deve
servir para alguma coisa. Um charuto, um calço, sei lá!
De fato, o tijolo crioulo
não pôde ser usado na parede da cobertura por estar fora das especificações e
exigências do projeto. Foi deixado de lado, na ponta da laje. Sentindo-se
desprezado, desejou jogar-se lá de cima. Um empurrãozinho de uns cinco
centímetros e estaria espatifado na área que seria o play-ground. Mas, sem
ajuda, teve que ficar ali, desolado.
Quando tocou a sirene, às
cinco da tarde, ele assistiu à descida dos operários pelo elevador de carga.
Respirou aliviado. Teria condições de passar uma noite de meditações, sem a
interferência de vozes humanas e distante dos colegas que foram tão severos com
ele.
Então tudo ficou quieto lá
em cima e ele pôde contemplar o por do sol maravilhado. Nunca tinha visto um
espetáculo de luz e cores tão deslumbrante. Poucas vezes vira o sol. Sempre
viveu nas entranhas da terra. Lá era tudo frio, úmido e escuro. Quantos séculos
ou milênios nessa condição!
Só recentemente sentiu-se
perturbado, quando a lâmina de uma máquina foi tirá-lo das suas profundezas.
Quando foi revolvido para a superfície viu o sol pela primeira vez e sentiu um
choque enorme. A claridade era excessiva e quente a ponto de absorver sua
umidade em pouco tempo. Dali fora transportado numa caçamba para a olaria e, em
menos de três dias, tinha virado tijolo.
É – pensou – as coisas
nesta terra são muito engraçadas, não param de mudar, de movimentar-se. Nada é
estático, imutável. Ontem eu jazia no fundo da terra, absorvendo água da
superfície e drenando para o rio subterrâneo. Hoje, estou aqui no cume deste
prédio, vendo um novo mundo se agitando lá embaixo e em volta de mim.
Amanhã, o oleiro que me
moldou, o motorista que me transportou e o servente que me jogou nesta ponta de
laje estarão lá de onde eu saí, transformando-se em argila. Quem sabe um dia,
muito para frente, quando já tiverem se tornado barro de boa qualidade, não
virão a ser tijolos de construção? Quem pode duvidar!
É, eles podem se
transformar em mim, mas eu nunca serei um deles. Pode ser que eu já tenha sido,
mas não voltarei a ser. A vida não regride, não anda para trás. Ora, se não
anda para trás, se está evoluindo sempre, então… então sou mais perfeito que o
ser humano, pois humano já posso ter sido e não poderei ser mais.
É, sou mais evoluído que o
homem então. Pensando bem, sou mesmo. Não sinto dor, nem frio. Não tenho
necessidade de comer ou beber, nem de me abrigar das intempéries. A minha
essência é mais perfeita. Qualquer que seja a forma que tome: tijolo, vaso,
caco, eu sou e sempre serei argila. Em bloco maciço, em lama movediça ou em pó,
vagando ao sabor do vento, sou sempre argila. As formas que tomar não me
alteram a essência.
Finalmente escurece, o sol
já não aparece mais. Sobressaem agora, lá embaixo, milhares de luzes nas ruas,
filas de pontinhos luminosos, fixos. E mais luzes se acendem nas casas e nos
prédios de apartamentos. As lanternas dos carros parecem que emendam seus
fachos de luz, formando um longo e único facho, branco num sentido e vermelho
no outro. Bonito de se ver.
O tijolo queimado riu do
apelido que lhe deram: “crioulo deformado”. E continuou pensando: Se fosse
humano, certamente teria me ofendido, achando que estava sendo discriminado.
Felizmente pude me conter e não permitir que a fraqueza humana me contagiasse,
como aconteceu com meus companheiros.
De repente, ficaram
vaidosos, insuportáveis. Regrediram. Afinal, o fato de ficar mais ou menos
queimado, perfeitamente retangular ou não, em nada mudou a minha natureza. Por
que então os humanos não se preocupam mais com o essencial e deixam de se
comparar pelas aparências? É, ainda não evoluíram.
Também não se pode exigir
muito dos seres inferiores. Eles ainda vão se superar, mas não agora, neste
estágio. Sentem-se frustrados por não serem o que sonham e por não conseguirem
um monte de coisas sem qualquer importância. Gastam o pouco tempo de vida que
têm na busca frenética de coisas insignificantes e não têm olhos, nem sentidos
para o que vale a pena buscar. Mas tem que ser mesmo assim. Eles ainda não
estão preparados para as grandes e verdadeiras revelações.
E a natureza, na sua
infinita sabedoria, acomoda-os no seu devido lugar, até um dia, em outro plano,
quando então terão condições de compreender o profundo sentido de tudo. Por
enquanto, é isso que se vê. Seus corações estão repletos de pequeninas,
insignificantes e variadas preocupações.
É um interminável rosário
de inquietações que lhes parecem sumamente importantes e que vão praticamente
do nascimento à morte. E se um ou outro se desvia desse padrão de
comportamento, pior para ele, que será enquadrado no rol dos insanos, dos
loucos. Como então não se importar com o sucesso financeiro do vizinho?
E por que não ambicionar o
poder sobre seus semelhantes? Ora, é mais do que necessário um carro novo. Um
usado não é a mesma coisa, mas se estiver com boa aparência já é um bom começo,
para quem não tem nenhum. “Meu Deus, que desgraça, não tenho uma roupa nova,
decente para ir à recepção do meu chefe!” “Será que teremos dinheiro para a
comida de amanhã?”
E diante desse
enfileiramento interminável de necessidades aparentemente tão presentes e
indispensáveis de serem satisfeitas o homem só falta se matar de trabalhar, de
sofrer, de se martirizar. Até que um dia, exaurido, dá o último suspiro e se
finda, sem ter conseguido o que pretendia. Mesmo que tenha conseguido
concretizar todos os seus anseios e ambições, ainda assim, concluirá que não
era isso que queria, porque, na verdade, nunca soube exatamente o que
procurava.
Passou a vida perseguindo
alvos falsos. Mas também não podia ser diferente. Sendo ainda imperfeito e
incompleto não estaria preparado para a única e verdadeira revelação. Sua
estrutura, ainda em processo de formação, explodiria. Daí então o trabalho da
natureza em colocar à sua frente as pequenas armadilhas, os obstáculos
trabalhosos, mas possíveis de serem transpostos, enfim, as preocupações humanas
do dia a dia.
Só sendo argila para
compreender tudo isso, concluiu o Crioulo Deformado. Independente disso, é
divertido voltar ao mundo dos homens.
Eles se sentem superiores,
inteligentes, acima de todos os seres animados e inanimados que habitam esta
terra. Pensam que são. Agem como uma criança que ainda não sabendo mentir
acredita ter enganado seus pais com uma história fantasiosa. São a um tempo
divertidos e tediosos esses pobres seres humanos.
Tentar compreendê-los é
perda de tempo. São por demais instáveis e volúveis. Não são capazes de manter
o equilíbrio, conservar o humor, a harmonia, a estabilidade emocional por longo
tempo. Alternam do riso para o choro, da alegria para a tristeza, da cordialidade
para a agressão, como um pêndulo ambulante. Nada os satisfaz, nada os contenta.
Estão sempre perseguindo, conquistando e abandonando objetivos, para perseguir,
conquistar e abandonar outros, sucessivamente. Procuram desesperadamente a
felicidade e, por isso mesmo, são tão infelizes.
Acho que isso acontece
porque procuram em lugares errados. No fundo, são dignos de compaixão. Mas como
convencê-los de que o caminho para se alcançar a felicidade não é o que seguem?
Jamais aceitarão. É como se o médico dissesse ao paciente que ele não precisa
de tantas injeções dolorosas e caras, de toda aquela parafernália de aparelhos
eletrônicos para ficar curado de sua moléstia, bastando apenas tomar uma tigela
de chá de uma determinada erva do mato por quinze dias.
Certamente esse paciente
deixaria o consultório do seu médico decepcionado e enfurecido, achando-o um
grandessíssimo idiota, e dizendo: “Esses médicos de hoje não sabem mais nada de
medicina. Onde que um chazinho vai resolver o meu problema? Minha doença não é
brincadeira, é coisa muito
séria. Não é à toa que venho sofrendo todos esses anos e gastando horrores com
remédios e consultas!”
É, finalizou o Crioulo
Deformado, a felicidade muitas vezes está no chá das ervas, isto é, nas buscas
mais simples. Só que os humanos não compreendem isso!
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* Nascido), em Faro (PA) é escritor, contista e
poeta. Ocupa a cadeira de número 34, da APL (Academia Paraense de Letras).
Escreve regularmente neste blog.
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