O MANIFESTO DE UM VELHO RATO



- por Roberto de Faro (*)

Difícil avaliar o quanto ando aborrecido ultimamente. Sem dúvida, outro qualquer sentiria semelhante enfado. E mais até, não tivesse eu o espírito de tolerância que tenho em relação às contingências da vida.
Apesar da idade, tento encaixar-me ao tempo e às circunstâncias. Custa-me muito essa flexibilidade, mas de outra forma não sobreviveria. E se sofro com as constantes mutações da vida – e sofro mesmo – ainda assim, não deixo transparecer aos que me circundam esse estado de angústia.
Guardo-o só para mim. E à medida que posso, exceto hoje, trabalho para amenizá-lo. Que importa aos jovens que um velho rato sofra? Que morra! – dirão eles. Nem por isso os quero mal. Vivem sua época, onde não há lugar para velhos. Portanto, para que prive da companhia dos moços, necessito remoçar-me a cada dia.
E nisso reside o formidável paradoxo. Quanto mais me enrugo na idade, mais procuro retroceder meu espírito, ao ponto de hoje sentir-me um maduro que caminha para a adolescência.
Na contramão, sem dúvida, posto que o convencional e lógico, já que a estrada sendo mão única, é dirigir-me para a velhice. Luto pelo inverso para não envelhecer.
Graças à minha agilidade física e mental, sinto-me nadando contra a correnteza. Embora com muito mais esforço, ganho em dez braçadas um palmo a mais em direção à nascente. Estou convencido, e todos estão também, que a nascente é uma utopia. Jamais chegarei a ela novamente.
O mais que posso fazer é dificultar um pouco mais minha chegada à desembocadura. Nisso consiste meu esforço e minha plenitude: não permitir ser arrastado sem reagir.
Porém, nem tudo que concebo e aceito em teoria, consigo pôr em prática sem provocar uma guerra íntima. É a reação instintiva, de conservação. É a própria natureza do velho rato que se obsta às transformações inesperadas, prontas.
Agora então direi o motivo dos meus justos aborrecimentos, que embora não sejam tão sérios, são, contudo, agastadores. E isso me preocupa profundamente.
Há anos resido dentro de uns caixotes empilhados no saguão de um tradicional bar e restaurante da Avenida Santo Amaro: o “Zé Carioca”. Graças ao grande movimento da casa, patrão e empregados não têm
tempo de vir aqui fazer arrumações. E assim, podemos viver em paz, eu e meu clã, no nosso edifício de caixotes.
Ao lado do saguão há um pequeno prédio que foi transformado num tal de IESA (Instituto de Ensino Santo Amaro). Não sei ao certo a verdadeira finalidade desse instituto, mas para nós só há uma: perturbar o sossego em que vivíamos.
No início meus netinhos protestaram. Minha filha e meu genro também. Protestos justos, sem dúvida. Ainda assim, argumentei que seria melhor aceitar essa nova condição do que promover uma represália organizada. Com esse tipo de gente – disse-lhes – é melhor não questionar. Em toda a História, nunca levamos muita vantagem em declarar guerra aos homens. Cabe-nos sempre o pior.
– Vovô, mas o senhor não disse que os homens têm medo da gente? – interferiu meu netinho mais novo que estava ao meu colo.
– Sim – respondi-lhe – em épocas antigas, sim. E conseguimos esmagadoras vitórias, como foi o caso do nosso general Ratossandro que, à frente de um grande exército, abrindo uma terceira frente na Guerra de Peloponeso, onde lutavam Esparta e Atenas, conseguiu arrasar os dois exércitos contendores.
E o maior feito dessa guerra foi ainda do nosso general que, em pleno fragor da batalha, matou o general Péricles, comandante do exército ateniense. Também na Idade Média conquistamos muitas vitórias sobre os homens daquela época. Não possuíam armas contra nós e disso nos prevalecíamos para exterminá-los. Era a lei do mais forte.
E nós éramos mais ferozes que o próprio Átila, rei dos Hunos. A grande razão de termos sido tão temidos era pelo fato de formarmos um povo coeso. Hoje, não temos pátria. Vivemos como os judeus, espalhados pelo mundo inteiro, em pequenas sociedades.
Isso, naturalmente, contribuiu para tirar-nos a força e a audácia de que eram imbuídos nossos ancestrais. Portanto, meus filhos, no mundo de hoje, devemos seguir Gandhi. A não-violência tem que ser a nossa arma, já que não temos condições de ser os violentos de outrora.
No nosso caso, por exemplo, viver em paz com os homens e, principalmente com os nossos novos vizinhos estudantes aí do lado, é a fórmula correta de sobrevivência. Depois de tudo que falei, meus filhos, peço-lhes apenas uma coisa: nada de protestos ou hostilidades.
Vivamos nossas vidas e deixemos o IESA viver a sua, torcendo apenas para que esse instituto mude de endereço e nos deixe em paz.
Do último andar do nosso prédio assisto ao movimento da escola, através de um vitrô que dá para uma das salas de aula. Felizmente sou analfabeto de pai, mãe e ascendentes.
Se para aprender alguma coisa for preciso tanta balbúrdia, prefiro a paz e morrer como nasci. É o que os estudantes-homens fazem. Acham que para aprender precisam de alarde e alarido. Acredito que se fossem mais compenetrados e menos barulhentos poderiam aprender muito mais em muito menos tempo.
Digo isso, porque sou testemunha ocular e auricular do que acontece no prédio vizinho. A primeira lição que deveriam aprender seria o respeito. Respeito ao direito dos outros.
Ora, se nós não o incomodamos, que direito têm eles de nos incomodar? Nem aqui no “Zé Carioca” é assim. E olhem que aqui é um bar e restaurante onde entra gente de todo tipo e de toda classe para comer e beber. Pois é, nem esses são tão arruaceiros como os nossos novos vizinhos.
Sinceramente, chego até a pensar que os estudantes aprenderiam mais aqui do que nesse tal de IESA! Pelo menos, quando eles vêm aqui, até que se comportam com certa dignidade.
Mas bom mesmo seria que essa escola fechasse ou mudasse de endereço. Só assim voltaríamos a viver em paz!

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(*) Nascido em Faro (PA), é escritor, contista e poeta. Ocupa a cadeira de número 34, da APL (Academia Paraense de Letras).

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