DEPOIMENTO DE UM VELHO LITRO DE VINHO
- por Roberto
de Faro (*)
Ali permaneci por seis
anos. Não fosse incólume à poeira, certo teria morrido asfixiado há muito tempo
e não me teria sido possível esta oportunidade, porquanto só agora tomei gosto
por relatos. E por ironia, este que é o primeiro, será o último também. Decerto
despertei tarde. Cuidarei, portanto, de não falhar no conteúdo, já que
fracassei no tempo. Terá sabor de testamento, se assim quiserem.
Para ter mais liberdade de
me expressar e para que possam compreender meu ponto de vista, e até mesmo
perdoar meus deslizes, cumpre-me identificar-me.
Não sou mais que um litro
de vinho engarrafado, residente e domiciliado num bar muito obscuro desta
cidade. Sou de procedência gaúcha e mais que isso nada direi. Posso apenas
acrescentar que não sou de primeira qualidade, mas dado ao tempo em que me acho
engarrafado, posso garantir que hoje sou um vinho razoável.
E, sem dúvida, meu maior
mérito é ser o único que enfeito (ou enfeio) as prateleiras do meu bar. Digo
meu, porquanto já adquiri certa estabilidade dentro da firma, embora sem
garantia alguma.
A qualquer momento
descem-me da prateleira, glup-glup-glup, e aí tudo se finda. Mas por enquanto,
estou aqui, velho, empoeirado, presente, presenciando a tudo no bar do seu
Cordeiro, que de cordeiro só lhe resta a cara e o sobrenome. Ainda assim, não
lhe gosto menos. Tem me poupado até agora.
Certa ocasião, do alto do
meu escaninho, vi entrar um homem estranho. Se bem que a toda hora entram e
saem homens estranhos, mas, aquele me pareceu mais enigmático que todos.
Exalava um cheiro acre de frustração. Procurou uma mesa solitária num canto e
escondeu-se dos outros.
Aparentava um alcoólatra
inveterado pelos olhos esbugalhados e as faces encardidas e macilentas que
tinha. Lanceou a vista pela prateleira e deteve-se por algum tempo em mim.
Aquele olhar anuviado
sobre mim foi mais que um susto, tomou proporções de ameaça. Notei que acenou
para o garçom. Era o fim! Contudo, a sorte favoreceu-me, apesar do empregado
conspirar contra mim. Queria livrar-se, sem dúvida, da minha permanente
presença inútil. Não chegaram a um acordo.
O frustrado freguês não
dispunha de recursos para ir além da cachaça. Isso, creio, veio acrescentar-lhe
mais uma frustração às que já possuía. Passou então à cachaça e eu a
observá-lo. Falava de si para si em sons inaudíveis. Somente uma queixa pude
captar. “Isso precisa acabar”, dizia ele, “isso precisa acabar!” De princípio
não atentei para o sentido da frase. Não sabia se “isso” era o bar ou o resto
de bebida no fundo do copo. Depois, pela contração lúgubre do rosto, percebi o
que tencionava.
Estava disposto a acabar
definitivamente com suas frustrações. “Isso precisa acabar!”, repetia. E da sua
mesa escondida saiu rua afora. Parecia caminhar trôpego para o cadafalso.
Penalizou-me deveras aquele homem. Ele ou outro, o certo é que muito se
comentou no dia seguinte, entre um trago e uma baforada de Macedônia, sobre o
suicídio de um homem, num terreno baldio, nas proximidades do bar.
Acreditei ter sido ele
mesmo. Os homens tomam atitudes grotescas demais que nunca chegamos a
entendê-las e a eles menos ainda. Lamentei deveras o ocorrido. Porém, por outro
lado, gozei uma paz interior muito grande. E essa paz consistia em não ter sido
eu o encorajador de semelhante rescisão com a vida.
Hoje a ameaça
assemelhou-se à do bêbado na noite do suicídio. Pelo que vejo não vai ficar em
simples ameaça, que só pelo fato de ameaça, nada tem de simples.
Faz alguns minutos que
três rapazes sentaram-se na mesma mesa do suicida e pedem com estúpida
insistência para o garçom que está deveras ocupado, uma garrafa de vinho. Se
fôssemos pelo menos duas, procuraria iludir-me até o momento final.
Infelizmente isso não
ocorre. Serei eu a vítima, sem dúvida, a menos que mudem de opinião sobre a
bebida que preferem. E o melhor que faço é preparar-me ao sacrifício, orando ao
grande Baco. Essa longa demora na prateleira foi responsável pelo novo sentido
que dominou minha vida. Hoje não me agrada nem interessa agradar ao paladar dos
que se regalam com vinho. Não faz sentido para mim essa função, repugna-me até.
Mas o que importa aos homens é a aparência e eu tenho aparência de vinho.
Para eles isso basta.
Jamais se preocupariam em saber se transcendi ao simples vinho. Oh, divino Baco,
imploro tua piedade! Os homens querem regalar-se à minha custa em ocasião tão
imprópria. Em teus bacanais fazia sentido inebriar teus convidados.
Nós éramos o centro dos
teus banquetes e sabíamos nos comportar decentemente, embora os teus convidados
não o soubessem. De qualquer forma, agradava-nos embriagar os patrícios
eminentes da antiga Roma, porque para eles éramos uma festa. Buscavam em nós a
alegria de viver, de bem viver. E se, por alguma razão, achassem que não valia
a pena mais viver, encontravam na cicuta a sua honrosa e solene despedida, e
não no álcool, como fazem os desgraçados de hoje. Isso não faz sentido. Viver é
uma coisa, morrer é outra. Para cada situação existem armas apropriadas.
Oh! Lá foi o outro garçom
atender os rapazes. Querem porque querem vinho! Esse moço que é novato nem
sabia que eu estava aqui empoleirado bem no alto da prateleira, escondido pela
poeira, mas um dos rapazes já me viu e mostra para os outros e para ele onde
estou.
Com alguma dificuldade, o
garçom trepa numa escada desengonçada e, por fim, agarra-me pelo gargalo, quase
me sufocando. Agora, com a mão direita, pega-me firme e com a esquerda
segura-se na escada e começa a descer, mas o velho degrau não resiste ao seu
peso e quebra-se. O coitado, instintivamente, solta-me, tentando evitar a
queda. De nada adiantou. Caiu com escada e tudo. E eu, despencando no espaço,
ainda vi os olhos dos três rapazes quase saltando das órbitas pelo susto, fitos
na nossa direção. E também foi só. Depois não vi, nem senti mais nada!
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(*) Nascido em Faro (PA), é
escritor, contista e poeta. Ocupa a cadeira de número 34, da APL (Academia
Paraense de Letras).
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