PEIXES-BOI BRASILEIROS SÃO DESPACHADOS PARA O CARIBE
O Brasil abre mão da sua fauna em prol de uma
iniciativa internacional. Pode parecer heroico à primeira vista, mas o que a
medida expõe é o descaso brasileiro.
Ganhar uma passagem só de
ida para o Caribe pode parecer um prêmio de loteria. Mas para cinco peixes-boi
marinhos do Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA), em Itamaracá, Pernambuco, a
realidade é outra. Ao invés de uma vitória, a transferência desses animais para
o Parque Nacional de Guadalupe - com passagem marcada para meados de abril -
representa o enorme fracasso da ciência brasileira.
Instituído em 1998, o CMA
é uma continuação do bem-sucedido Projeto Peixe-Boi, que surgiu em 1980 para
dar início às pesquisas sobre a espécie. Desde 2010, o CMA passa por
dificuldades inegáveis. A situação é tão calamitosa que até mesmo a bióloga e
coordenadora do CMA, Fábia Luna, admite ser este um dos motivos para o envio
dos animais. "Precisamos fazer reformas nos recintos, e não temos como
fazer isso enquanto os peixes-boi ocupam o espaço", explica. Do total de
19 animais, além dos cinco previstos para Guadalupe, dois serão transferidos
para o Aquário de São Paulo.
É inadmissível presumir
que o governo federal não poderia ter agido antes, com investimento, para
resolver os problemas estruturais. Nesse contexto, o projeto de Guadalupe caiu
feito uma luva. Caso dê certo, a importância de tirar a espécie da extinção -
situação do peixe-boi marinho naquela região - é inquestionável. Contudo, os
fins não justificam os meios. Com recursos do Ministério do Meio Ambiente, a
estrutura conservacionista de Itamaracá, que abriga as espécies, recebe cerca
de 3,5 milhões de reais por ano. Dinheiro que sai do bolso de todos os
brasileiros. De acordo com a Associação de Pesquisas e Preservação de
Ecossistemas Aquáticos (Aquasis), o custo de um animal por ano chega a 400 000
reais. O governo francês começou o planejamento para receber peixes-boi marinhos
há vinte anos. Com cerca de 1 milhão de euros (muito menos do que custaria no
Brasil), finalizou-se a construção de tanques e instalações técnicas para
abrigar os novos moradores do parque nacional.
No Brasil, o peixe-boi
marinho, animal herbívoro, foi considerado o mamífero aquático em maior risco
de extinção, por causa da caça. Hoje ele é elencado como "em perigo"
pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), mas só existem
duas pesquisas que estimam a sua população. A mais atual indica que são 1 000
indivíduos, e a anterior indicava 500, em áreas de observação distintas e com
uso de metodologias conservacionistas diferentes.
Para calcular o valor
econômico do peixe-boi, a Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, fez um
estudo sobre a sua função ecológica e a geração de empregos e renda com
turismo. No condado de Citrus, na Flórida, um levantamento de 2004 mostrou que
os peixes-boi renderam entre 8,7 milhões e 9,4 milhões de dólares por ano.
Entre 1994 e 1999, o condado gastou quase 2 milhões de dólares por semestre a
cada ano em tratamento mecânico e herbicida de vegetação aquática. Sem os
peixes-boi, que naturalmente cumprem com essas funções, os gastos dobrariam.
A transferência entre
países é legal e está prevista na Convenção sobre o Comércio Internacional de
Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), tratado
internacional do qual o Brasil é signatário. No caso do peixe-boi marinho, o
acordo não pode gerar lucro para o Brasil. Se fosse o caso, existiria a opção
de seguir o exemplo da China, que cobra 1 milhão de dólares pelo aluguel de
cada panda em zoológicos pelo mundo. Mesmo assim, a legalidade caminha ao lado
de uma controvérsia.
De acordo com o advogado
especialista em direito ambiental, Fernando Pinheiro Pedro, o texto do decreto
que regulariza a participação do Brasil, aprovado em 2000, tem uma falha.
"Cada país deve ter uma autoridade administrativa e outra científica.
Aqui, as duas são o IBAMA. Não há diálogo, o que ele decidir vai ficar por isso
mesmo", explica. Com relação ao caso dos peixes-boi, o ICMBio foi
designado para analisar o caso. "O segundo problema é que o ICMBio é o
irmão siamês do IBAMA. Eles têm capacidade técnica plena, mas o tratado
internacional fala em instituição científica no sentido de pesquisa e ensino, o
que não é o caso de nenhum dos dois. A documentação para a transferência está
em ordem, o problema é o decreto de quinze anos atrás", afirma.
Especialistas brasileiros
se manifestaram e questionaram a medida. Para o diretor-presidente da Fundação
Mamíferos Aquáticos (FMA), João Carlos Gomes Borges, a situação da fauna do
Brasil não é confortável para que o país abra mão de um exemplar sequer.
"O projeto de Guadalupe pode ser replicado aqui. Existem dificuldades
financeiras no CMA, mas não é sensato deixar que limitações econômicas definam
as prioridades. Se vamos suprir a carência de um programa de reintrodução, não
há motivo para que não seja no Brasil, já que as necessidades são
semelhantes", afirma.
A discussão não se resume
a Brasil versus Guadalupe. Os cinco animais não podem ser soltos na natureza,
eles já se reproduziram e há irmãos de futuros filhotes nadando pelo litoral, o
que representa um problema genético caso eles cruzem entre si. Ao mesmo tempo,
a subespécie brasileira pode ter diferenças genéticas daquela de Guadalupe,
impedindo que os animais sobrevivam no ambiente inadequado para eles.
Se permanecessem no
Brasil, esses animais podem ficar em tanques de visitação em locais onde não há
contato natural com o peixe-boi e servir para pesquisas sobre a espécie, e
também como atração turística. Se a população tem contato com os animais,
cresce o interesse em protegê-los. Um exemplo de sucesso é o Projeto Tamar, que
com o dinheiro de seus centros turísticos conseguiu completar 35 anos com a
marca de 20 milhões de filhotes de tartarugas marinhas soltos no mar.
O mico-leão-dourado,
ameaçado de extinção na década de 70, foi reintroduzido com filhotes de
cativeiro que nasceram em zoológicos ao redor do mundo, a exemplo do que será
feito em Guadalupe. A diferença é que o pequeno primata é exclusivo do Brasil,
endêmico da Mata Atlântica brasileira no Rio de Janeiro. Na década de 80 eram
200 animais na natureza, hoje são cerca de 3 200. A ararinha-azul é considerada
extinta e, nesse mês, um casal nascido na Alemanha chegou ao Brasil para fazer
companhia às outras 11 aves que vivem no país. Esses casos fazem pensar se o
governo precisa mesmo que o peixe-boi marinho chegue a esse ponto para ter
interesse em repatriar a espécie.
No começo deste ano,
reportagem de VEJA mostrou o caso do boto cor-de-rosa, caçado aos milhares por
pescadores na Amazônia há anos, sem fiscalização efetiva do governo. Foi
somente com o desenvolvimento de um teste genético, por uma pesquisadora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, que se conseguiu aprovar uma moratória
para aprimorar o trabalho que visa coibir a matança. Esses péssimos exemplos de
descaso com nossa natureza indicam que o governo brasileiro está abrindo mão
dos seus animais e deixando à mercê da sorte os centros que supostamente são
responsáveis por garantir a sobrevivência das espécies que vivem no país.
Fonte/Foto: Jennifer
Ann Thomas - veja.abril.com.br/Leo Caldas
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