O CASO DO URUBU
- por Ademar Amaral (*)
Era uma cidadezinha, pra
bem dizer, um lugarejo perdido no interior desta Amazônia de Deus.
Quando muito, talvez, umas
cinco ruas sem um resquício de pavimento. Nem se sabia de televisão, novidades
chegavam no rádio de pilha. Havia só uns dois aparelhos, em torno de onde a
mulherada se juntava pra ouvir “Meu Destino é Pecar”, novela dramalhão onde
imperavam todas as traições e cornices deste mundo.
Nunca se soube explicar se
a vidinha antes tão pacata das senhoras daquele fim de mundo, mudou de ponta
cabeça por causa da tal novela ou se já vinha de muito tempo. O fato é que a
notícia de que todas pulavam cerca, ou pelo menos a maioria, se expandiu e era
motivo de grande comentário nas redondezas.
Os maridos saiam pra
pescar, pro roçado, e as esposas ficavam dando à vontade pra quem aparecesse.
Uma loucura. A fama ruim do lugarejo ia que ia se distanciando até pras
lonjuras da capital. Tudo verdade? Vá saber, sempre há muita falança, mas onde
há fumaça, dizem, sempre corre risco de brotar algum incêndio.
Urubu
Para quem se avizinhava do
lugar, a única obra vista de longe era a torre idosa da velha caixa d’água,
ainda dos tempos do interventor Magalhães Barata. Estragada de tanto buraco,
não acumulava nem mais água de chuva, que dirá daquela bomba a vapor que há
muito os pedaços já andavam ao léu, servindo de âncora pra canoa.
A tubulação de ferro
estava tão carcomida como a administração pública, visto que a cidade carecia
de um prefeito. O último havia fugido para Manaus com a mulher do vice que, de
tão desgostoso, um dia subiu na dita torre da caixa d’água e de lá se atirou
pra eternidade. E tome conversa pra borbulhar ainda mais a triste sina da
cidadezinha. Quem quisesse água que fosse buscar no rio, de lata nas costas, a
bom sofrer escorregão pela ribanceira. Tempo difícil…
O fato é que o prefeito se
mandou com a mulher do vice e depois que este se suicidou, ninguém mais quis
assumir o lugar. O poder estava vago e cada morador que cuidasse do próprio
quintal. Só seu Junqueira, com sua solteirice mal disfarçada (melhor não seria
dizer forçada?), cuja esposa, até então exemplo de dona de lar, tinha se
enrabichado com um marchante de boi, ainda era quem tinha a palavra mais lúcida
sobre a tal vacancy do poder:
-Foi culpa dessa tal de
“Meu Destino é Pecar”, seu moço, mexeu com os grelos dessa mulherada. E quem
havera de querer assumir esta porcaria de prefeitura sem ao menos um vintém pra
roubar?
A vida rolava, seu
Junqueira saía todo dia em busca duma caça pra matar a fome. Não tinha mulher
ao alcance da rede e atamancava a necessidade com a patroa do compadre
Joãozinho, quando ele saía zagaiando de noite com uma lanterna de carbureto.
Quando não, se socava pro mato, subia o morro donde avistava a cidade inteira e
se aliviava escondido numa velha égua de estimação.
Pois foi que um dia, muito
afastado de casa e cansado do ombro de tanto carregar uma paca abatida, que
aconteceu do seu Junqueira encontrar aquele ninho de urubu, onde viu aquele
filhote ainda com a penugem branquinha. Levou o bichinho pra casa e foi criando
ele com carinho de família.
Não demorou ficar um
urubusão forte, veio a vontade de voar e a ave até já ensaiava uns treinos
curtos pelo quintal. Aí, um dia, bem cedinho, comovido com a aflição do amigo
naquele bater de asas, seu Junqueira teve uma brilhante ideia: levou o urubu lá
pra cima do morro e com todo jeito, teve uma conversa com a ave.
– Meu preto – seu
Junqueira chamava o urubu de meu preto – olha lá pra baixo, tá vendo essa
cidade de má fama? Será que ainda tem uma mulher que presta naquele casario?
Hoje vai ser teu primeiro voo. Vai até lá voando, meu preto, pousa na casa de
uma mulher honesta e volta aqui pra me contar.
Dito isso, ele deu um
impulso de ajuda e largou o urubu no vazio.
– Vai meu preto – gritou
seu Junqueira – te espero dentro de uma hora.
Sozinho e inseguro, o
lindo urubu claudicou meio sem jeito a ponto de quase se arrebentar num galho
de papa-terra, mas logo tomou o rumo certo e ganhou o firmamento.
Um breve parêntesis: a
gente fica sabendo de uma linda história de amizade como essa e só acredita que
ela foi possível num tempo em que o xiitismo ecológico ainda não imperava
nestes rincões da Amazônia. Hoje, vá alguma autoridade desse meio saber que um
homem cria um urubu de estimação, que logo dá parte e o cara acaba no xilindró.
É crime pior do que esses casos de mensalão e lava jato, onde logo todos ficam
rindo da nossa cara. Fecha parêntesis.
Mas como eu disse, o urubu
tinha uma difícil missão e alçou vôo. Seu Junqueira ficou urubuservando o
planar elegante do bicho, até ele sumir de vista no meio do casario da vila.
Deu nove horas, conforme acertado, e ele não voltou. Deu dez, deu onze. Lá pelo
meio-dia, seu Junqueira começou a ficar preocupado.
Será que seu estimado
urubu tinha fugido? Algum moleque tinha balado ele? Correu pra cidade e haja
andar à procura do urubu. Bordejou por riba dos telhados e nada. Já ia meio
choroso e pensativo de alguma desgraça que pudesse ter acontecido, quando
levantou a vista pro céu e se encheu de contentamento: “meu preto” estava
pousado e quieto lá na guia da velha caída d’água.
Foto: Telmo
Filho/Flickr
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*Nascido em Óbidos, é
engenheiro civil e escritor, autor do “Sementes do Sol”, romance que tem como
pano de fundo o ciclo da juta na Amazônia. Reside em Belém.
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