A ÚLTIMA GOTA
por Malu Nunes*
A crise no Sistema
Cantareira, que abastece 9,86 milhões de pessoas na Grande São Paulo e no
interior, é um exemplo concreto de que o abastecimento de água pode ficar
comprometido também em outras cidades do Brasil. Ainda que tenhamos uma visão
otimista, os últimos episódios de seca no Sudeste e no Sul, que deixaram alguns
reservatórios de água dessas regiões em níveis críticos, mostram claramente que
há urgência na implantação de ações de conservação para a manutenção dos
recursos hídricos no país.
De acordo com o Atlas do
Brasil de abastecimento urbano de água, produzido pela Agência Nacional de
Águas (ANA) em 2010, a capacidade total dos sistemas produtores instalados e em
operação no país era de aproximadamente 587 m³/s há quatro anos, próxima das
demandas máximas verificadas na época, que eram de 543 m³/s. Esses dados
demonstram que grande parte das unidades estava no limite máximo de sua
capacidade operacional, sendo que a região Sudeste representava 51% da
capacidade instalada de produção de água no país.
Atualmente, as duas
maiores regiões metropolitanas do Sudeste – Rio de Janeiro e São Paulo – têm o
abastecimento de água garantido porque é realizada a transferência de grandes
vazões de mananciais localizados em bacias hidrográficas próximas. Para o
abastecimento da capital fluminense, é utilizada a bacia hidrográfica do Rio
Paraíba do Sul; enquanto a capital paulista se serve da bacia hidrográfica dos
rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. As duas bacias são responsáveis pelas
maiores reversões hídricas para os sistemas Guandu (RJ) e Cantareira (SP),
respectivamente. São duas fontes que começam a ficar saturadas porque servem a milhares
de consumidores – ambas regiões concentram grande densidade populacional,
gerando consumo de água muito maior do que a capacidade produtiva dessas
bacias. Desse modo, fica mais próximo o risco de os consumidores abrirem as
torneiras e não verem a água escorrer.
Não podemos credenciar,
porém, os motivos para a crise de abastecimento somente ao consumo excessivo e
ao mau uso da água por parte da população. Seria ingênuo atribuir a esses dois
fatores apenas, pois a questão é mais complexa: vai desde a falta de políticas
públicas que incentivem a proteção dos mananciais de água ao desmatamento de
áreas naturais, o qual altera o ciclo da água e a variabilidade de chuvas nas
regiões onde antes predominavam.
É necessário avaliar ciclo
da água de modo global: a perda de áreas com vegetação nativa em todos os
biomas do país afeta a disponibilidade de água não só em níveis locais, mas
também em regiões distantes. O Cerrado, por exemplo, é conhecido como a ‘caixa
d’água’ do Brasil, uma vez que concentra oito das 12 bacias hidrográficas do
país e possui alta concentração de nascentes de rios que abastecem outras
regiões brasileiras. No caso da Amazônia, há o fenômeno dos “rios voadores”,
grandes massas de vapor de água que se formam no Oceano Atlântico e aumentam de
volume ao incorporar a umidade evaporada pela floresta. Levados pelas correntes
de ar em direção ao Sul do país, elas são importantes para a formação de chuvas
em diversas regiões. Portanto, o aumento no desmatamento da Amazônia, que após
quatro anos em queda voltou a subir em 2013, pode reduzir os índices
pluviométricos em outras regiões.
As áreas naturais possuem
grande importância na regulação dos recursos hídricos. Sem elas, a água não
realiza o seu ciclo natural, que inclui a evaporação, formação das nuvens e das
chuvas nas cabeceiras dos rios que alimentam as bacias hidrográficas do país,
causando desequilíbrio.
É essa situação que
acontece no caso do Sistema Cantareira, considerado um dos maiores sistemas
produtores de água do mundo. Ele é formado por seis represas interligadas por
48 km túneis que aproveitam os desníveis e a acumulação da água por gravidade
para a formação de reservatórios. Os rios que formam as represas do Sistema são
o Jacareí e o Jaguari – cujas nascentes estão localizadas em Minas Gerais – e
mais os rios Cachoeira de Piracaia, Atibainha e Juqueri, cujas nascentes estão
em São Paulo. É nas cabeceiras desses rios que as chuvas têm caído pouco, mesmo
no período das cheias que vai de novembro a março no Sudeste.
Os índices pluviométricos
abaixo da média histórica nas cabeceiras reduziram os fluxos de água nos rios
que abastecem o Sistema Cantareira, de modo que os níveis de suas represas
começaram a baixar rapidamente. A redução da disponibilidade hídrica resultou
na crise de abastecimento à população.
E agora, o que fazer
diante dessa grave situação? Os governos federal, estaduais e municipais
precisam buscar mecanismos para melhorar a gestão da água e garantir a
segurança hídrica. Esse conceito representa o direito da população de ter
acesso à água de boa qualidade e em quantidade suficiente para garantir a sua
subsistência, bem-estar e o desenvolvimento socioeconômico do país.
No Brasil, faz-se
necessária ainda a construção de uma forte aliança entre os diversos setores da
sociedade – iniciativa privada, organizações não governamentais, população e
poder público – como parte de um esforço global para proteção dos recursos
naturais. Proteção que passa pela
criação e implementação de
Unidades de Conservação, áreas protegidas primordiais para garantir a
conservação dos recursos naturais e dos serviços ambientais que essas áreas
proporcionam, entre eles a produção de água em qualidade e quantidade
adequadas.
Como a agropecuária têm
importante papel na economia brasileira, no ranking do consumo de água o setor
agrícola ocupa o primeiro lugar, sendo responsável por 70% do consumo nacional
(20% é usado pela indústria e 10% pelos consumidores finais). Por isso, é fundamental
proteger as matas ciliares e as nascentes dos rios também em propriedades
rurais, evitando a poluição e o assoreamento dos rios e assegurando margens
arborizadas, de modo que a água infiltre lentamente o solo e possa cumprir o
seu ciclo, de maneira regular. Nesse contexto, é importante a manutenção de
reservas legais e das Áreas de Proteção Permanente (APPs), com a função
ambiental de conservar os recursos hídricos e a manutenção dos processos
ecológicos.
Está mais do que na hora
de todos os setores conscientizarem-se de que o problema de escassez da água
não é somente de São Paulo – é hoje o mais grave. Caso contrário, a nossa
desatenção pode ser a gota d’água. O desafio consiste em como garantir o
abastecimento às grandes cidades brasileiras nos próximos anos, uma vez que é
previsto crescimento populacional e, consequentemente, aumento das demandas de
consumo. São necessários investimentos urgentes para a adequação dos sistemas
produtores de água, sobretudo no Sudeste, e planejamento para otimização de uso
das fontes hídricas. Além disso, a proteção de áreas naturais é condição sine
qua non, pois a qualidade e a quantidade de água produzidas pela natureza
dependem da manutenção da vegetação nativa.
* Malu Nunes é engenheira
florestal e diretora-executiva da Fundação Grupo Boticário de Proteção à
Natureza.
** Publicado originalmente
no site Plurale.
Nenhum comentário:
Postar um comentário