DA MUDANÇA DE REGIME À DIPLOMACIA DESCLASSIFICADA
Washington, Estados
Unidos, abril/2014 – No 50º aniversário da derrubada – com apoio dos Estados
Unidos – de João Goulart no Brasil, seu filho, João Vicente, solicitou ao
Senado brasileiro que exija oficialmente a desclassificação de documentos
norte-americanos ainda secretos sobre as operações encobertas que contribuíram
com esse dramático golpe de Estado.
Dadas as tensões nas
relações entre Brasil e Estados Unidos, geradas por uma forma mais moderna de
penetração norte-americana nos assuntos internos brasileiros, parece improvável
que o governo de Barack Obama divulgue essa documentação de imediato.
Entretanto, se alguma vez
houve uma oportunidade de usar registros históricos norte-americanos
desclassificados como uma ferramenta diplomática única, esse momento é agora.
De fato, o governo dos Estados
Unidos praticou a arte da diplomacia de desclassificação em várias nações,
avaliando e divulgando milhares de registros armazenados nas “instalações
seguras e de informação compartimentada” da Agência Central de Inteligência
(CIA), do Departamento de Defesa e do Departamento de Estado, entre outras
agências de segurança, como gestos diplomáticos, bem como para promover a
defesa dos direitos humanos, a verdade e a justiça.
Como outras ferramentas de
política externa – ajuda econômica, comércio e apoio diplomático – esses
registros históricos podem realizar uma contribuição potente para a promoção
dos interesses dos Estados Unidos em matéria de estabilidade e de uma
comunidade mundial pacífica e mais justa.
No Equador, por exemplo,
apesar das tensões com o governo de Rafael Correa, a administração de George W.
Bush (2001-2009) realizou um gesto importante de desclassificação especial de
registros do Departamento de Estado para ajudar a Comissão da Verdade equatoriana.
No Chile, após a prisão do
general Augusto Pinochet em Londres, o governo de Bill Clinton (1993-2001)
ordenou a revisão e divulgação de 23 mil documentos secretos.
Em uma cerimônia pública
na Biblioteca Nacional de Santiago, o embaixador dos Estados Unidos, John
O’Leary, esvaziou dezenas de pastas cheias de registros desclassificados da
CIA, do Conselho de Segurança Nacional, do Departamento de Estado e do
Departamento de Defesa.
Em seu favor deve-se dizer
que, desde meados dos anos 1970, o governo dos Estados Unidos vem
desclassificando documentos secretos sobre o papel que desempenhou no golpe de
Estado brasileiro, por meio de
procedimentos rotineiros
de desclassificação e da Lei de Liberdade de Informação.
Inclusive as gravações da
Casa Branca – em que os presidentes John Fitzgerald Kennedy (1961-1963) e
Lyndon Johnson (1963-1969) discutiam as complexidades da conspiração golpista,
da mudança de regime e da intervenção militar no Brasil com seus assessores –
agora estão disponíveis para consulta pública.
Graças a esses registros
conhecemos muitos detalhes secretos da “Operação Irmão Sam”, o plano do
Pentágono para fornecer armas, gasolina e até tropas de combate se fosse
necessário para garantir o sucesso do golpe militar.
“Não queríamos que as
forças armadas brasileiras avançassem até termos tudo em marcha”, diz um
memorando altamente confidencial da Casa Branca, datado de 30 de março de 1964.
Entretanto, as ações
encobertas dos agentes da CIA no Brasil nessa época continuam classificadas.
Para uma nação orgulhosa e
independente como o Brasil, a audácia e a arrogância imperial refletidas nestes
registros são, no mínimo, ofensivas. Entretanto, se há um resultado positivo da
significativa participação dos Estados Unidos no golpe e de seu apoio aos
regimes militares que se seguiram nos 21 anos posteriores, é o detalhado
registro histórico que deixou.
Os arquivos secretos do
governo dos Estados Unidos contêm milhares de telegramas, relatórios,
avaliações de inteligência e memorandos de conversações que podem lançar luz, e
o farão, sobre a era da repressão no Brasil.
Um telegrama
desclassificado do Departamento de Estado, que data de 1973 e que meu
escritório entregou nos últimos tempos à Comissão Nacional da Verdade do
Brasil, por exemplo, na realidade revela a existência de um centro de
inteligência militar no município paulista de Osasco, onde foram cometidas
violações sistemáticas e grotescas contra os direitos humanos.
Um dos torturadores desse
centro se orgulhou perante funcionários dos Estados Unidos de usar a
tristemente célebre técnica de tortura conhecida como “pau de arara” (que
consiste em pendurar a pessoa em uma barra, com os pés amarrados às mãos) para
quebrar a vontade dos prisioneiros.Também ofereceu um “relato em primeira mão”
sobre uma técnica de execução que descreveu como “suturar o suspeito”, ou seja,
“crivar de tiros da cabeça aos pés com armas automáticas”. Era um “procedimento
padrão” informou a embaixada dos Estados Unidos, para matar supostos
“terroristas” em São Paulo.
As forças armadas e os
serviços de inteligência do Brasil parecem ter feito desaparecer seus próprios
arquivos secretos, como fizeram desaparecer as vítimas.
Por esse motivo, os
documentos desclassificados pelos Estados Unidos demonstrarão ser de grande
valor para o trabalho que atualmente realiza a Comissão da Verdade do Brasil,
bem como para cidadãos brasileiros e norte-americanos que têm direito de
conhecer sua história, além de direito à justiça.
O direito de saber é
fundamental para a saúde democrática de nossas sociedades. Além disso, o Brasil
é um exemplo de onde pode se promover a saúde de uma relação bilateral positiva
com os Estados Unidos por meio da prática sem igual da diplomacia de
desclassificação. Envolverde/IPS
* Peter Kornbluh dirige o Projeto de Documentação do Brasil no
National Security Archive, um centro de pesquisa de interesse público em
Washington D.C., especializado em registros desclassificados de política
externa. Este artigo foi publicado pela primeira vez em português no jornal
Folha de S.Paulo.
Fonte/Foto: envolverde.com.br/www.ecodebate.com.br
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