ARTIGO: JESUS ERA ANALFABETO ?
Como este blog já tentou
explicar outras vezes, não é nada simples determinar o que é fato histórico e o
que é interpretação teológica nas Escrituras judaico-cristãs (ou em qualquer
obra da Antiguidade de modo mais geral, claro). Essa tarefa exige uma atenção
aos detalhes do texto e à trama complicada de fontes e pontos de vista que
levaram à sua composição que uma leitura “inocente” simplesmente deixa passar.
E isso vale até para pormenores aparentemente bobos. Por exemplo: Jesus sabia
ler e escrever?
Muitos estudiosos tendem a
achar que ele era analfabeto. Caí na besteira de registrar essa opinião numa
reportagem para a revista “Galileu” certa vez e fui apedrejado por um leitor.
“Então o Verbo de Deus era analfabeto?”, vociferou ele. Não consegui entender
muito bem a indignação porque 1)o Verbo pode ser oral e não escrito, certo? e
2)Não vejo por que quem escolheu nascer numa manjedoura não poderia ter também
escolhido, como outra marca de sua solidariedade para com os menores entre nós,
nascer analfabeto (usando o ponto de vista cristão, claro). Mas isso é
digressão. Vamos ao que interessa: como tentar tirar essa dúvida usando as
ferramentas da análise histórica?
Bom, primeiro tem sempre a
questão da probabilidade. Artesãos e camponeses de um vilarejo como Nazaré —
tão insignificante que não é mencionada em praticamente nenhuma fonte antiga
fora do Novo Testamento – em geral não tinham acesso a qualquer forma de
educação. As estimativas variam um pouco, mas como regra geral é possível
afirmar que menos de 10% dos habitantes do Império Romano sabiam ler e escrever
no século 1º a.C. — e Jesus certamente não estava entre os “10% de cima” do
ponto de vista econômico e social. Poderia ter sido uma exceção, mas as
probabilidades jogam contra.
“Mas espere”, dirá o
leitor familiarizado com os Evangelhos. “Temos mais de uma passagem descrevendo
Jesus a ler e escrever no Novo Testamento!”. Sim, temos, mas elas são
problemáticas.
PALAVRAS NA AREIA
A primeira está no
Evangelho de João (capítulo 8, versículo 6), na famosa cena em que trazem uma
mulher adúltera para ser apedrejada diante de Jesus e ele usa a celebérrima
frase “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra” pra salvar a pobre.
Após ouvir os acusadores da mulher, diz o evangelista, “Jesus, inclinando-se,
escrevia na terra com o dedo”.
Caso encerrado, certo? O
problema é que a probabilidade de que esse incidente remonte ao Jesus histórico
é considerada baixa. Conforme explica o padre e historiador americano John P.
Meier em sua série de livros “Um Judeu Marginal”: “Essa perícope [passagem
bíblica] não existe nos melhores e mais antigos manuscritos do Evangelho de
João, aparece em alguns manuscritos do Evangelho de Lucas [?!], quase não
merece comentário dos exegetas gregos do primeiro milênio, e é considerada por
alguns especialistas uma criação da Igreja do século 2º, envolvida numa
controvérsia sobre a misericórdia que se deveria ter para com os pecadores”.
Chato, né.
Falando em Evangelho de
Lucas, outra passagem desse evangelista na qual Jesus aparece lendo é
igualmente suspeita do ponto de vista histórico. No texto (capítulo 4, a partir
do versículo 16), Jesus entra na sinagoga de Nazaré e lê para os judeus
reunidos no local uma passagem do livro do profeta Isaías. O detalhe, porém, é
que nenhum rolo (lembre-se, naquele tempo os livros eram rolos) das profecias
de Isaías continha texto semelhante ao “lido” por Jesus: primeiro ele lê três
trechos do capítulo 61, depois salta para um versículo do capítulo 58 e aí
volta outro pedaço do capítulo 61. Não tem como ler um rolo de papiro desse
jeito.
Problema adicional de
historicidade: no fim da cena, os moradores de Nazaré, bravos com o que lhes
parece ser a arrogância de seu conterrâneo, planejam levar Jesus “para o alto
da colina onde ficava a cidade” e jogá-lo de lá de cima. Bem, na verdade a
Nazaré da época imperial ficava num vale, não no alto de um morro…
OK, esses são os
argumentos contra Jesus ser alfabetizado. Como argumentos a favor, Meier coloca
o aparente conhecimento detalhado que Jesus tinha das Escrituras judaicas —
embora, em tese, isso também pudesse ser conseguido por meio de instrução oral
e assiduidade na sinagoga, por exemplo.
Vejam bem: ninguém aqui
está dizendo que os Evangelhos são mentirosos. A questão é que, nesse tipo de
texto, os fatos e a tradição sobre Jesus são narrados a serviço de uma
instrução religiosa das comunidades cristãs. O objetivo é ensinar “quem” é
Jesus — e não uma transcrição taquigráfica do que aconteceu por volta do ano 30
d.C. Daí porque é complicadíssimo, embora não impossível, usar esse tipo de
texto como fonte histórica.
Autor:
Reinaldo Lopes / darwinedeus.blogfolha.uol.com.br
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