OS MÉDICOS BRASILEIROS TÊM MEDO DE QUÊ?
Por Ricardo Palacios*
A exploração por parte do
capital é uma novidade para o grêmio médico no Brasil. Recentemente um dos
setores mais conservadores da sociedade viu sua condição de profissão liberal
ser extinta pelos operadores dos planos de saúde que exploram a mais-valia obtida
através da prestação dos serviços. Assim, aqueles que foram selecionados
através de provas excludentes nas escolas de medicina e que sonham algum dia
virar burgueses estão hoje na rua para lutar por reivindicações trabalhistas.
Sim, os médicos agora fazem parte da classe trabalhadora, mesmo que não tenham
consciência dessa nova relação com os meios sociais da produção.
No site dos Conselhos
Regionais e do Conselho Federal de Medicina aparecem destacados apelos mais
apropriados para sindicatos que para órgãos fiscalizadores de uma profissão,
hipertrofiando sua função secundária de zelar “pela valorização do profissional
médico”.
Mobilizações para exigir
aumento dos honorários pagos pelos planos de saúde e campanhas para promover
carreira de Estado são pautas frequentes nesses órgãos durante os últimos
meses. Isso demonstra que os temas trabalhistas ganharam uma notoriedade
insuspeita dentre os médicos.
Mas a última dessas
batalhas do grêmio médico é, de longe, a mais complexa: o convite a médicos
estrangeiros para trabalhar no território nacional. Esse assunto é
particularmente sensível porque atinge ao mesmo tempo o status outorgado pelo
ingresso às escolas médicas, posturas políticas, questionamento da liderança e
o temor de concorrentes novos no mercado de trabalho.
O ingresso às escolas
médicas no Brasil acontece através de um penoso processo que visa excluir
aqueles provenientes de camadas com menores recursos e oportunidades. Na visão
oposta, trata-se da seleção dos “melhores”, como se nessa lógica inversa a
qualidade de um médico fosse garantida pela seleção que teve para entrar, e não
pela formação adquirida dentro da escola médica.
Os médicos estrangeiros
representam um desafio a esse paradigma: muitos países têm processos de seleção
muito mais acessíveis para o ingresso. A seleção real acontece dentro da escola
de medicina. Os alunos são constantemente avaliados, reprovados e jubilados, se
necessário, durante o processo de formação médica. Diferentemente do que
acontece no Brasil, entrar na escola de medicina não significa que o aluno será
médico seis ou sete anos mais tarde.
A ênfase em outras
latitudes é dada ao resultado final da educação; mais que o exame de ingresso,
a avaliação crucial está na saída. Aqui, só o Conselho Regional de Medicina de São
Paulo, CREMESP, avaliou os formandos de forma obrigatória em 2012. Menos da
metade dos médicos foi aprovada nesse exame.
Mas não há consequências.
O exame documentou a falsidade do mito de seleção dos “melhores”, inclusive com
um terço dos egressos de faculdades públicas reprovados, mas o mito permanece
intacto. As paixões exacerbadas contra médicos brasileiros formados no
exterior, particularmente em Cuba, estão relacionadas ao fato de eles
encontrarem um atalho para ultrapassar a barreira de entrada nas faculdades de
medicina.
A seleção de candidatos
brasileiros para ingressar nas escolas de medicina para estrangeiros em Cuba
foi canalizada no Brasil por movimentos sociais e partidos políticos ligados à
esquerda. A ascensão do governo comandado por Luiz Inácio Lula da Silva foi a
esperança dos egressos de Cuba que queriam regularizar sua situação no país.
A resposta dos médicos não
se fez esperar: as portas desses que não foram submetidos à seleção das
faculdades brasileiras foram fechadas pelas próprias faculdades via
revalidação.
Com algumas exceções, as
universidades públicas, obrigadas por lei a atender essas revalidações, se
omitiram, não respondiam ou criavam penosas vias sacras para quem ousasse
seguir em frente com o processo.
Os médicos formados no
exterior formaram um curioso bando de peregrinos que se encontravam em cada
estado que finalmente voltava a receber a documentação ou realizava uma prova.
A pressão dentro dos próprios aliados de esquerda do governo fez com que os
ministérios da Saúde e da Educação criassem uma alternativa à qual podiam se
adequar às universidades públicas para padronizar a revalidação.
O viés da primeira edição
do exame, em 2010, foi vergonhoso. Chamado de Revalida, o exame acontece em
duas etapas, uma teórica e outra prática. O nível de dificuldade foi tão grande
que só dois, entre mais de 600 inscritos, formados em diferentes escolas
médicas do mundo, foram chamados para a segunda fase. Os organizadores
reconheceram que o nível de exigência foi além do necessário e prometeram
reformular o exame.
Não existe nenhum critério
para estabelecer algum grau de isonomia, como testar previamente o nível de
dificuldade das perguntas em formandos de escolas brasileiras ou fazer um exame
de igual teor ao realizado pelo CREMESP em 2012.
Cabe anotar que a
peregrinação para os que queiram fazer o Revalida continua: por exemplo, o
exame não é oferecido no estado de São Paulo porque nenhuma universidade
pública paulista aderiu a ele, mas o CREMESP obriga ao formado no exterior a
ter seu diploma revalidado por esse exame numa norma prescrita para atender o
clamor de seus fiscalizados nas ruas.
Nesse panorama, aparece um
novo elemento: a distribuição desigual dos médicos na geografia nacional atinge
níveis insustentáveis e se transforma em elemento político. Os médicos do
Brasil, assim como os dos Estados Unidos ou outros países, se desinteressam
pelo serviço nas cidades do interior e nas periferias das grandes cidades.
Há muitas razões para esse
desinteresse: a formação médica acontece em ambientes tecnologicamente
complexos muito diferentes da realidade desses locais carentes de recursos; as
possibilidades de retorno financeiro parecem ligadas a especialidades que
demandam mais recursos técnicos; e o atrativo natural que exercem as grandes cidades
em sociedades individualistas em detrimento da vida bucólica do interior pode
ser contada entre outras causas.
Mas a realidade da falta
de atendimento médico fala mais alto. Os prefeitos se organizaram para
pressionar por uma solução que trouxesse dividendos eleitorais e finalmente o
governo comprou a causa.
Houve várias tentativas.
Inicialmente o governo ofereceu aos médicos recém-formados dinheiro e pontos a
mais para os disputados exames de acesso à residência médica no programa
Provab.
O estamento médico
criticou a iniciativa, colocando argumentos como o de que o uso de pontos no
exame seria uma chantagem para deixar um médico recém-formado abandonado à
sorte no interior e sem nenhum tipo de supervisão.
Talvez estejam certos.
O problema pode ser deixar
os pacientes abandonados a um médico recém-formado que não tem capacitação
adequada para esses locais de atenção básica de baixa tecnologia. Locais em que
a medicina cubana é especialista.
A medicina em Cuba usa um
modelo diferente ao brasileiro. Está fundamentado em atenção básica e
prevenção, com médicos acessíveis morando nas mesmas comunidades e um avanço
tecnológico quase congelado após a queda da Cortina de Ferro.
Combinação contrastante
que consegue atender a maioria de pacientes e obter excelentes estatísticas de
saúde, comparáveis a qualquer país desenvolvido, a custo muito mais baixo. Mas,
para a minoria dos pacientes, aqueles casos que requerem maior tecnologia, a
receita pode ser insuficiente. A formação em grande escala de médicos permitiu
que o país criasse as chamadas “Missiones” internacionais, que levaram
atendimento médico a regiões carentes e remotas em dezenas de países.
Nos últimos anos, a
exportação de serviços médicos se tornou a primeira fonte de divisas da ilha,
principalmente pelas ações na vizinha Venezuela. A solução parece conveniente
para todas as partes, médicos cubanos que estão dispostos a trabalhar no
interior do Brasil e nas periferias para ajudar seu país e a população, que
veria fim em sua espera por atendimento médico e estaria disposta a votar por
quem fez isso acontecer. Mas há um obstáculo a vencer: a resistência do grêmio
médico brasileiro.
Como vimos antes, os
médicos brasileiros estavam ocupados em questões trabalhistas com seus
principais empregadores, os planos de saúde e o governo. Em sua nova condição
de classe trabalhadora, relativamente bem paga, mas trabalhadora, sua condição
de fonte de ideias e de liderança dos tempos de classe média se extinguiram sob
sua nova classe.
Em papel reativo, os
médicos não conseguem elaborar contrapropostas para solucionar os problemas de
falta de atendimento de saúde que sofre a maior parte da população.
A sua única resposta é que
não trabalham no interior porque não tem plano de carreira nem condições de
trabalhar. Uma continuação do repertório trabalhista anterior. Nenhuma proposta
real para contrastar com as ideias do governo, que continua na liderança
através de uma organizada campanha de mídia para angariar apoios e anunciando
que estenderá os convites também a médicos espanhóis, portugueses e argentinos.
A própria presidenta
empenha sua palavra de trazer os médios como parte de sua estratégia para
melhorar a saúde e acalmar as manifestações que tomaram conta do país.
O ministro da Saúde
promete que as vagas só serão oferecidas a estrangeiros após serem recusadas
por médicos brasileiros, promessa de quem tem certeza da recusa. As vagas, há
tempos, aguardam por médicos brasileiros que as ocupem. Nesse cenário saem os
médicos às ruas para protestar.
Os médicos estrangeiros a
serem importados são o principal alvo em um protesto com pesado caráter
trabalhista, de proteção de mercado. Porque a pior ameaça que os cubanos
representam é que podem dar certo. Porque os cubanos podem demonstrar que a
população não necessita de grandes hospitais de alta tecnologia, mas de médicos
acessíveis que estejam ao seu lado.
*Ricardo Palacios é médico, formado no exterior com o diploma
devidamente revalidado no Brasil, foi consultor temporário para projetos de
pesquisa da Organização Mundial da Saúde e agora estuda Ciências Sociais na
Universidade de São Paulo
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