O PODER PÚBLICO NÃO CONSEGUE ENTENDER AS MANIFESTAÇÕES DE SÃO PAULO
- por Leonardo
Sakamoto
Muitos representantes
políticos não entendem como manifestações como os protestos contra o aumento
das passagens em São Paulo não são conduzidos por partidos, sindicatos e
associações, mas sim em um processo descentralizado. Há lideranças no
movimento, mas elas estão lá para organizar, não necessariamente controlar o
que brotou da insatisfação popular tanto à persistência de problemas existentes
quanto aos tipos de soluções que vêm sendo dadas pelos próprios representantes
políticos a esses problemas. Por conta disso, vi declarações de analistas que,
beges e em pânico, afirmavam que não sabiam como dialogar com uma situação
dessas.
Ótimo. Que fujam do
comodismo estanque e reaprendam a se comunicar. Pois as demandas, agora, são
outras.
Antes de mais nada, vale
dizer que os políticos tradicionais têm dificuldade em assimilar como
movimentos utilizam ferramentas como Twitter e Facebook. Acreditam que são
apenas um espaço para marketing pessoal ou, no máximo, um canal para fluir
informação ou atingir o eleitor. Há também os que crêem que redes sociais
funcionam como entidades em si e não como plataformas de construção política
onde vozes dissonantes ganham escala, pois não são mediadas pelos veículos
tradicionais de comunicação. Ou seja, onde você encontra o que não é visto em
outros lugares, por exemplo.
Essas tecnologias de
comunicação não são ferramentas de descrição da realidade, mas sim de
construção e reconstrução desta. Quando a pessoa está atuando através de uma
dessas redes, não reporta simplesmente. Inventa, articula, muda. Vive. Isso
está mudando aos poucos a forma de se fazer política e as formas de
participação social. O poder concedido a representantes, tanto em partidos,
como em sindicados, associações, entre outros espaços, tende a diminuir e a
atuação direta das pessoas com os desígnios da sua polis, consequentemente,
aumentar.
Voltando às manifestações
em si. Muitos desses analistas bravejam contra o uso da força, representado
pelo bloqueio de uma avenida, por exemplo. Mas o uso dessa força que incomoda é
um instrumento político legítimo. É claro que devido à sua natureza, se
utilizada, deve ser apenas em circunstâncias extremas. Pode contribuir para
alcançar um objetivo, mas também gerar impactos negativos sobre a imagem de
determinado grupo junto à sociedade. É, contudo, uma alternativa, muitas vezes
desesperada, diante da incapacidade do poder público de agir diante do
desespero alheio. Ou, pior, quando o Estado é ele próprio agente de desrespeito
aos mais fundamentais direitos. Nesse caso, recorrer a quem? Às divindades da
mitologia cristã?
O diálogo e as vias legais
devem ser a primeira opção e, se possível, a única. Mas nem sempre o outro
lado, hegemônico, está disposto a negociar – principalmente se isso significar
perda de regalias (note-se que não falei de perda de direitos, mas sim de
re-ga-li-as). Muitos diálogos terminam em muros intransponíveis pelas vias
legais. E, vale a pena lembrar, muitas das leis que impõe desigualdades foram
implantadas pelas classe sociais mais abastadas da sociedade, através da ação
de seus representantes políticos em parlamentos.
Desigualdades que,
sobrepostas e reafirmadas ao longo do tempo através de instituições como
igrejas, família, escolas, setores da mídia, enfim, os instrumentos à mão,
transformam exploração em tradição. O explorado esquece a razão da exploração e
acaba aceitando-a, mais ou menos na linha do “Deus quis assim” ou “a vida é
assim mesmo”. E, antes que eu me esqueça, maldito seja o “homem cordial”
brasileiro. Pessoa do deixa-disso do para-com-isso, que não bate-boca, que não
debate porque lhe foi ensinado que isso é feio. Com isso, não evolui, nem ajuda
a evoluir.
Jovens ingleses
desempregados, sem esperança e perspectivas, sob uma longa recessão econômica e
uma polícia despreparada para ligar com protestos, iniciaram uma revolta e
foram chamados de vândalos lá e aqui. O estopim do protesto, os “20 centavos”
deles, pouco importa. Pois não era o estopim a razão da revolta, mas um
acumulado de fatores que giravam em torno de sua qualidade de vida. Na verdade,
da falta dela. Muita gente no Reino Unido não entendia porque eles faziam
aquilo já que, durante tanto tempo, aceitaram coisa pior em silêncio.
Nesse ponto, manifestações
públicas que causem impacto urbano, como congestionamentos, devem ser
consideradas como legítima defesa e não como violência gratuita. Da mesma forma
que uma ocupação em praça pública no Egito, que impeça o país de funcionar
normalmente enquanto um ditador não deixar o poder. Ou o bloqueio de rodovias
que chegam a La Paz, enquanto os direitos de populações tradicionais não forem
respeitados. E até mesmo a resistência contra o salve-se-quem-puder do
capitalismo global, atormentando a vida do mercado financeiro em Wall Street,
em Saint Paul ou na ruas de Roma.
Muitas vozes se levantam
para reclamar da “violência” resultante dessas ações, mas se calam diante de
massacres, chacinas e genocídios que ocorrem diariamente. Ou das pequenas
violências do dia-a-dia, como ter que espremido feito bagaço de laranja em um
busão após um dia cheio de trabalho ou ir acomodado, feito sardinha em óleo,
voltando para casa de metrô. Só quem nunca pegou transporte público pode pedir
calma à população mediante a passagens caras e serviço ruim.
“Ah, mas esses jovens que
resolveram, de uma hora para outra, questionar como a vida foi organizada antes
deles nascerem são muito novos para entender.” Não, não são não. Já perceberam
o que significa ordem, hierarquia e tradição e não gostaram. Até porque são
valores de uma civilização representada por fuzis, colheitadeiras, motosserras,
terno e paletó que, mais cedo ou mais tarde, vai ter que mudar. Isso não é o
mundo, nem a política, que muitos deles querem.
O paradigma do sistema
político representativo está em grave crise por não ter conseguido dar
respostas satisfatórias à sociedade. Aos mais jovens, sobretudo. Bem pelo
contrário, apesar de ser uma importante arena de discussão, ele não foi capaz
de alterar o status quo. Apenas lançou migalhas através de pequenas concessões,
mantendo a estrutura da mesma maneira e a população sob controle. O Estado
continua servindo aos interesses de alguns privilegiados.
A incapacidade do sistema
político de gerar respostas satisfatórias levou também ao fortalecimento da
luta em outras frentes, além daquela representada pelo capital-trabalho. A
vanguarda dos progressistas foi ocupada por grupos que discutem as liberdades
individuais e a qualidade de vida nas grandes cidades – da mobilidade urbana,
passando pelas demandas de direitos sexuais e reprodutivos ao poder de dispor
do próprio corpo.
Os mais velhos vêm isso
como uma pauta que não altera em nada a estrutura social. Bem, como já disse
aqui, o problema entre a velha e a nova “esquerda” (na falta de uma outra
palavra de contestação ao status quo usei essa, mas podem também chamar de “jujuba”
ou “picanha” se não gostarem de “esquerda”) está no contexto histórico em que
seus atores foram formados. Não adianta mostrar fatos novos ou uma nova luz
para a interpretação da realidade, há grupos que fecham e não abrem com padrões
paleozóicos de interpretação da realidade.
A meu ver a solução desse
embate se dará com os mais antigos se retirando com a idade para dar lugar aos
mais novos, formados em uma matriz diferente.
Protestos contra o aumento
de passagens do transporte público; sobre estações de metrô que têm sua
localização alterada em benefícios de um grupo social privilegiado; ocupações
de reitorias por estudantes, de prédios abandonados por sem-teto; manifestações
pelo direito ao aborto, pelo uso de substâncias consideradas como ilícitas e outras
liberdades. Todas têm um objetivo muito maior do que obter concessões de curto
prazo. Elas não servem apenas para garantir transporte público, tapar as
goteiras das salas de aula, destinar um prédio aos sem-teto ou ainda conquistar
direitos individuais. Os problemas enfrentados pelos movimentos urbanos
envolvidos nesses atos políticos não são pontuais, mas sim decorrência de um
modelo de desenvolvimento que enquanto explora o trabalho, concentra a renda e
favorece classes de abastados, deprecia a coisa pública (quando ela não se
encaixa em seus interesses) ou a privatiza (quando ela se encaixa).
Como muitos dizem, a luta
não é por “20 centavos”. É por
dignidade.
As ações são, sim, uma
disputa de poder feita simultaneamente em âmbito local e global que, no
horizonte histórico, poderá resultar na manutenção da pilhagem econômica,
social e cultural da grande maioria da sociedade ou levar à implantação de um
novo modelo – mais humano, livre e democrático.
A história mostra que
apesar da esquerda ter capacidade de influenciar a realidade no país, ela não
foi capaz de transformá-la. E a menos que novas respostas se imponham para
romper com a estrutura atual, continuaremos vendo fracassos se repetirem. A
reconquista do espaço público traz uma lufada de esperança para a busca de
respostas. Você, que reclama dessa molecada, deveria levantar e aplaudir de pé.
Pois talvez essa nova geração, auxiliada pela tecnologia, faça a diferença na
forma que os que vieram antes ainda não conseguiram fazer.
Sobre o autor:
Leonardo
Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e
o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão.
Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu
representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
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