MEMÓRIAS AFETIVAS
Deus
e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, um dos mais importantes filmes da
cinematografia brasileira, foi exibido para convidados, no Rio de Janeiro, no
fatídico 31 de março de 1964. Mais um dia e provavelmente não haveria clima
para o acontecimento.
No
entanto, uma vez cessada a febre de perseguição à liberdade de expressão, o
ambiente arrefeceu e o sol se levantou, aquecendo a imaginação e a criatividade
de milhares de brasileiros brilhantes. Até o eclipse do AI-5, em 13 de dezembro
de 1968.
Nesses
quatro anos se alternaram verões, primaveras e outonos culturais. A tolerância
– combinada com o estímulo – à crítica exerceu um papel oxigenador, que nem os
impulsos inquisitoriais conseguiram sufocar. Até que novamente as armas
voltaram a ser usadas para definir quem era o dono do poder.
Duas
mortes me trouxeram a memória desse interregno. Localmente, a do poeta Jamil Damous,
um maranhense que se formou intelectualmente em Belém e se consolidou no Rio de
Janeiro. Somos, talvez, da última geração que se formou pela leitura
indisciplinada, quase caótica, de tudo – sob o decanato da ousadia, antes das
trevas do AI-5.
Como
líamos freneticamente, a cada dia havia material novo para servir de combustão
para os debates apaixonados (mas sempre fundamentados em autores) que
travávamos nos bares, especialmente no Bar do Parque, ao lado do Teatro da Paz.
Frequentemente o sol já se espichava por trás das mangueiras e ainda não
havíamos concluído o raciocínio. Muito menos definido quem ganhara. Sempre
houve controvérsias a respeito.
Pouco
tempo atrás um amigo comum me disse que Jamil morrera. Fiquei tão aturdido pela
notícia que, fechando uma edição deste jornal, tratei de manifestar minha dor e
indignação pelo passamento precoce do poeta e amigo. Em carne, osso e voz, ele
mandou dizer que estava vivo e ativo. Pena que desta vez não seja um novo trote
(ou podemos considerá-lo como tal, até o próximo encontro?).
A
outra morte foi a de Tereza Rachel. Eu a conheci também naqueles intensíssimos
anos de 1960). No Rio de Janeiro, vi espetáculos que estão entre os melhores da
dramaturgia nacional, dentre os quais Liberdade, Liberdade, no qual Tereza
Rachel pontificava junto com Paulo Autran, intervindo no mosaico de colagens
feitas por Millôr Fernandes e Flávio Rangel. A força e a novidade que esse tipo
de encenação representava a tornaram inesquecível.
Jamil
e Tereza são a prova de que o mais subversivo e o mais redentor da presença
humana neste planeta é a liberdade de pensar e expressar o que vem do mais
íntimo do ser.
-
Lúcio Flávio Pinto, Jornal Pessoal 606, abril de 2016)
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