ARTIGO: EXCESSO NA ABERTURA DOS CRITÉRIOS PARA POSSE DE ARMAS E SEUS RISCOS
O Decreto 9685/2019 altera
alguns dispositivos do Decreto 5123/2004 – que regula a aplicação da Lei
10826/2003 (Estatuto do Desarmamento). Diversos pontos podem ser objeto de
análise, mas aqui reservaremos o comentário para apenas dois incisos (III e IV do
art. 12, § 7º) do Decreto, os quais têm o efeito prático de permitir, em tese,
a qualquer pessoa pleitear a posse de arma de fogo. Até então, o requisito mais
difícil de preencher era a demonstração de “efetiva necessidade” para se ter em
casa uma arma. A partir de agora, considera-se efetiva necessidade, dentre
outros, residir em zona rural ou residir em zona urbana em estado com
determinado índice anual de homicídio.
O primeiro guarda um risco
social muito grande. Os conflitos em torno da distribuição de terras lidam com
nuanças complexas. Muito mais do que a simplificação polarizada das redes
sociais, são questões referentes à distribuição de terras, política de reforma
agrária, direito de (e à) propriedade e sua função social. Diante do baixo
interesse político por tocar em pauta tão delicada, muitos movimentos populares
encontram na ocupação de terras um mecanismo para gerar pressão política. Com a
abertura para armar os proprietários de terra (que muitas vezes já o faziam,
apesar da proibição legal), os conflitos agrários podem se tornar ainda mais
letais. Se isso acontecer, corremos o risco de caminhar para uma de duas
possibilidades: os integrantes dos movimentos podem reagir agravando a
violência nas ocupações (isso gera um círculo vicioso de incremento da reação
violenta), o que permite aprofundar a criminalização daqueles; ou desmobilizar
de forma sensível a luta pela distribuição de terras e paralisar a política de
reforma agrária prevista na Constituição.
Com relação ao segundo, a
indicação de um requisito cumulativo (residir em região urbana e UF com
determinado índice de homicídio) pode parecer salutar, mas o critério é
efetivamente vazio. O relatório do IPEA mencionado no texto do Decreto aponta
que todas as Unidades da Federação possuem índice registrado de homicídio acima
de 10 por 100 mil (São Paulo é detentor da menor taxa – 10,9). Como não há, no
relatório, um levantamento por Município, a norma usa como referência a
estatística estadual. Eis aí a insanidade do critério: todos os Estados têm
índices superiores ao referido no texto normativo, logo todas as áreas urbanas
no Brasil se enquadram no requisito.
Apenas com esses dois
incisos, o requisito da “efetiva necessidade” se aplica para todos os que
residem em área urbana ou rural – o que significa essencialmente todo o
residente no Brasil. O principal limite que resta é o econômico: os custos de
armas, cursos e demais formalidades são proibitivos para a maior parte da
população.
Em síntese, por meio do
Decreto, temos o esvaziamento unilateral da Lei 10826/2003, cujo efeito prático
é um retorno à forma anteriormente vigente. Isso é institucionalmente perigoso,
pois, indiretamente, o Poder Executivo neutraliza uma decisão que compete ao
Legislativo. Em segundo lugar, pavimenta um caminho de grandes riscos aos
conflitos fundiários rurais no Brasil. A tendência é perniciosa em todos os
cenários: aumento da letalidade no campo, mais abertura para criminalização dos
movimentos sociais e anulação da pauta da reforma agrária.
Autor:
Felipe Heringer Roxo da Motta, professor do curso de Direito do Centro
Universitário Internacional Uninter.
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